“Todo médico tem seu cemitério, mas o meu está aumentando mais do que eu esperava”. Ouvi essa frase ao entrevistar uma médica cearense ainda na primeira onda da pandemia, em maio de 2020. Ela falava dos pacientes que todos os profissionais de saúde perdem ao longo da carreira. Faz parte do trabalho e, em determinada medida, eles aprendem a lidar com as mortes. Mas, ao longo de quase um ano desde essa entrevista, o “cemitério” dos profissionais de saúde no Brasil, devido à covid-19, se multiplicou com uma rapidez alarmante – e se torna cada dia mais insuportável, diante da falta de perspectiva de melhora.
Agora, quando o Brasil atinge a marca de 400 mil mortes causadas pelo novo coronavírus, convidamos profissionais de saúde a escreverem uma carta para o paciente que mais lhes marcou – e que não puderam salvar. O resultado está nos cinco vídeos que você vê aqui.
A técnica de enfermagem Polyena Santos da Silveira foi fotografada em Teresina ao lado de um paciente morto no chão, após tentativas frustradas de reanimar o homem, que não havia conseguido sequer uma maca. A imagem chocante viralizou nas redes sociais.
Na carta ao seu Manoel, ela pediu “desculpas pelo chão, desculpas pelas compressões fortes em seu peito”, resultado da “intensa vontade de fazer o senhor ficar”.
Pedro Carvalho Diniz, médico de Petrolina, sertão de Pernambuco, lembrou do seu paciente Wagner, um trabalhador que criava bodes no povoado onde vivia e que pegou covid-19 da mãe, de quem cuidava. Morreram os dois. “Não nos restou, no final, mais o que fazer, a não ser lhe darmos medicamentos para que você se sentisse confortável e fizesse sua cavalgada em paz”, relembra o médico.
A morte de mãe e filho também foi a história contada pela médica Joana Angélica de Souza Galluzzo, do Rio de Janeiro. Ela escreveu para Lidiane, paciente que estava grávida. “Não tinha outro jeito que não fosse prender o choro e fazer o que precisava ser feito para tentar salvar vocês dois, você e seu neném. Mas a vida não vingou”, ela lamenta.
Há semelhanças ainda com a história da paciente para quem o fisioterapeuta Wilson Zacarias Aires Neto, de Manaus, escreveu. Antes de ser intubada, Marina pediu que a equipe não contasse para a mãe, também internada, que seu estado tinha se agravado. O segredo da intubação e da morte de Marina foi mantido até que a mãe recebesse alta.
Em São Paulo, a mãe, o pai e a irmã da menina Cecília, de nove anos, ficaram inconformados de perder a criança para a covid-19. A história dessa paciente foi contada pela pediatra Maíra Terra Cunha Di Sarno. “Sua irmã de seis anos, ao saber da sua morte, pegou um pau de vassoura, levou até o jardim e ameaçou Deus dizendo: Papai do Céu, desce aqui, que eu quero te bater”.
Enquanto produzíamos os vídeos, ouvimos dos profissionais de saúde muitos relatos de fadiga, estresse, crises de ansiedade e dificuldades para dormir. Obstáculos como a falta de leitos, de medicamentos e até de oxigênio fazem com que eles falhem na missão de salvar mais vidas, e isso os adoece.
De acordo com um estudo realizado pela Fiocruz com várias categorias profissionais da área de saúde em mais de 2 mil municípios, a pandemia modificou de modo significativo a vida de 95% dos entrevistados. Quase metade admitiu excesso de trabalho, com jornadas acima de 40 horas semanais, e cerca de 16% relataram perturbação do sono. Um em cada dez profissionais citou irritabilidade, choro frequente, distúrbios em geral e/ou incapacidade de relaxar.
A conversa que eu tive no dia 22 de março com a médica Joana, que perdeu uma paciente grávida, reforça os dados. “Morreram seis pacientes em 24h e mais cinco no dia seguinte. Estamos nesse nível! Poucos recursos, sedativos, antibióticos…”, relatou. “Estou esgotada”.
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