A secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, estava nervosa na CPI do Genocídio. Também pudera, a pediatra atuou como uma espécie de embaixadora da cloroquina no país durante a pandemia, emprestando sua credibilidade de médica à narrativa fabricada pela seita bolsonarista, da qual se tornou uma devota das mais fervorosas. Não à toa ficou nacionalmente conhecida como “Capitã Cloroquina”, uma alcunha carinhosa oferecida pelo bolsonarismo.
Durante seu depoimento, a “capitã” mentiu muitas vezes aos senadores. Ela tentava negar o inegável ao dizer que o governo jamais indicou cloroquina contra a covid-19. Os senadores então despejaram um caminhão de fatos comprovados por documentos, áudios e vídeos que apontavam na direção contrária. Seria uma situação digna de dó se a capitã não fosse uma das cabeças por trás da disseminação do negacionismo assassino no Brasil.
A trajetória da pediatra até virar uma soldada do bolsonarismo nos ajuda a entender como nasceu essa onda reacionária que tomou conta do país. Assim como muitos outros políticos da extrema direita, ela começou na direita dita moderada. Em 2013, ganhou notoriedade no Ceará por ser uma ferrenha opositora do programa Mais Médicos do governo Dilma, tendo sido flagrada gritando contra médicos cubanos que chegavam no aeroporto de Fortaleza e pedindo para voltarem “para a senzala”.
No ano seguinte, mesmo com esse comportamento típico de uma extremista de direita, o PSDB aceitou sua filiação e lhe ofereceu uma candidatura para o cargo de deputada federal. Naquela época, a extrema direita mal existia como força política, mas já se alinhava à direita moderada, unidas pelo antipetismo alucinado em comum. A sua candidatura foi centrada na atuação midiática contra os Mais Médicos no Ceará, que a projetou na política nacional.
Mayra perdeu a eleição, mas foi crescendo como política dentro do ninho tucano e, em 2018, se candidatou ao Senado pelo partido. Perdeu novamente. Mas ela não ficou de mãos abanando. Assim que Henrique Mandetta assumiu o Ministério da Saúde do governo Bolsonaro, ofereceu para a capitã o cargo que ela ocupa até hoje. Foi pelas mãos desse direitista que hoje tenta posar de moderado que a pediatra chegou no governo bolsonarista. Os dois se conheceram no movimento político de médicos que se opunham ao Mais Médicos em 2013. Não foi pela competência e conhecimento técnico que ela ganhou essa boquinha no governo Bolsonaro, mas graças à sua feroz atuação como militante antipetista.
Mandetta e Nelson Teich foram cuspidos do governo por se recusarem a se alinhar ao negacionismo durante a pandemia. A Capitã Cloroquina, por outro lado, se alinhou perfeitamente aos delírios governistas, ganhando prestígio do presidente da República, recebendo o status de “capitã” e se mantendo no cargo enquanto pessoas sérias caíam. Depois que Pazuello aparelhou o ministério com militares, a secretária se tornou uma das raras médicas em postos de comando da pasta. Uma médica negacionista era tudo o que o bolsonarismo queria para conferir alguma credibilidade à sua política assassina durante a pandemia.
Além do PSDB, um outro grupo de direita que gosta de se ver como moderado ajudou a alavancar a carreira da doutora. Foi o RenovaBr, aquele grupelho de empresários milionários que diz defender a renovação na política, mas que, na prática, forma políticos para defenderem seus interesses — não à toa a grande maioria dos alunos foi eleita pelo partido Novo. Mayra se formou no curso oferecido pelos ricaços e depois colocou todo o conhecimento político adquirido a serviço do governo de extrema direita.
Em 2020, a médica negacionista chamou a atenção do Novo, partido no qual se filiou. A sigla chegou a cogitá-la como candidata à prefeitura de Fortaleza, mas acabou desistindo. Em março deste ano, ela se desfiliou do partido, decepcionada com as críticas de João Amoêdo ao governo Bolsonaro.
O Livres, um movimento suprapartidário criado para difundir e defender os ideais do liberalismo, também ofereceu abrigo para a pediatra. Mayra não era uma integrante qualquer. Ela era apresentada no site como uma das lideranças do movimento. O grupo chegou até a recomendar textos escritos por ela.
Em 2018, a médica foi demitida de um hospital público de Fortaleza alegando retaliação do governador do Ceará, o petista Camilo Santana, pelas críticas ao governo. O governador negou a perseguição e alegou que a demissão foi uma decisão da cooperativa da qual era contratada. Não é possível identificar se houve ou não a retaliação, mas o Livres correu para oferecer assistência jurídica para a sua liderança e a tratou como uma política perseguida pelo petismo, como afirmou em nota: “Repudiamos todas as formas de perseguição política, sintoma do autoritarismo e da incapacidade de convivência com o contraditório, características típicas do PT e que sempre denunciamos”. O movimento lutava contra o autoritarismo “típico do PT” enquanto levava debaixo das suas asas alguém que prestaria serviços ao autoritarismo bolsonarista.
Às vésperas do depoimento da médica na CPI, o Livres deu uma de louco: apagou todos os conteúdos referentes à Capitã Cloroquina, tentando apagar suas digitais na trajetória da bolsonarista. Entendo a vergonha, mas apagar o passado para fingir que nada aconteceu torna tudo ainda mais vergonhoso.
A médica, que até pouco tempo era considerada uma líder de movimento liberal, hoje protagoniza esse tipo de diálogo alucinógeno com o líder da seita extremista, Olavo de Carvalho:
Antes de virar essa heroína do negacionismo bolsonarista, a Capitã Cloroquina passou por PSDB, RenovaBr, partido Novo e Livres — grupos políticos que se apresentam ao público como representantes de uma direita civilizada, em contraste ao bolsonarismo. A lista de políticos que se criaram dentro desses grupos para depois servir aos interesses da extrema direita é gigantesca. Vai do ministro Ricardo Salles, passa pelo governador Zema, o deputado federal José Medeiros, o ministro Rogério Marinho, e por aí vai. Talvez seja o caso de avaliar qual o papel da direita moderada na ascensão da extrema direita no país.
A tampa do esgoto de onde saíram os extremistas foi aberta pelo antiesquerdismo alucinado, cultivado por grande parte da direita durante os governos petistas. Fazer oposição ferrenha é legítimo, faz parte do jogo, mas a coisa descambou e acabou se transformando em ódio a absolutamente a tudo o que vem da esquerda. Lembrando também que a direita moderada apoiou a eleição do candidato que prometeu “fuzilar a petralhada”. Agora estamos aqui, tendo que lidar com um negacionismo assassino que chegou ao poder com a ajuda de muitos liberais.
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