O biólogo Lucas Ferrante e o analista de dados Isaac Schrarstzhaupt bem que tentam não parecer pessimistas quando falam sobre o que deve acontecer no Brasil nos próximos meses de pandemia. Mas a chegada da variante delta do coronavírus, aliada ao baixo índice de vacinação, ao retorno das aulas presenciais e ao relaxamento da população com os cuidados essenciais, pode trazer consequências perigosas demais para boas notícias. Utilizando ferramentas diferentes de análise, os pesquisadores chegaram às mesmas conclusões: as mortes podem voltar a subir e, agora, são as crianças que estão em maior risco.
A solução para protegê-las, dizem Ferrante e Schrarstzhaupt de forma irredutível, é não mandá-las para as escolas nesse momento. Embora pareça repetitivo, os dois também defendem um lockdown nacional como a melhor medida para impedir um novo pico de mortes provocadas pela variante delta. “Pessoas têm que ficar longe de pessoas para cortar a cadeia de transmissão de forma rápida. E, claro, acelerar a vacinação”, disse Schrarstzhaupt ao Intercept. Apesar da convicção de que isso precisa ser feito, eles não têm a ilusão de que as soluções serão postas em prática. “Os governos estão fazendo o oposto, tentando normalizar o número de mil óbitos por dia”, criticou o pesquisador.
Até o dia 17 de agosto, o Ministério da Saúde notificou 1.051 casos da variante delta em 15 estados e no Distrito Federal, um aumento de 84% nas notificações em uma semana. Nesse período, ela provocou 41 mortes. Como mostram as informações vindas dos Estados Unidos, onde 99% das pessoas que morreram de covid-19 nas últimas semanas não tinham se vacinado, a nova cepa é mais transmissível e afeta principalmente quem ainda não está totalmente imunizado, o que é o caso de aproximadamente oito em cada 10 brasileiros – boa parte deles, crianças e adolescentes que estão prestes a voltar às salas de aula.
Somente em 2021, mais de 1.500 jovens entre 10 e 19 anos morreram de covid-19 até julho, dado mais recente disponível. Até maio, foram quase mil crianças de zero a nove anos. Isso significa que, a cada 1 milhão de crianças nessa faixa etária no Brasil, 32 perderam a vida para a doença – é a segunda maior taxa de óbitos no mundo – o Peru ocupa o primeiro lugar, com o índice de 41 mortes de crianças por milhão.
Dados do Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe, o Sivep-Gripe, mostram que 1.457 crianças de zero a 12 anos morreram de Síndrome Aguda Respiratória Grave desde o início da pandemia. O número parece baixo, se comparado ao total de mais de 570 mil brasileiros mortos por covid-19, mas, nesta entrevista feita simultaneamente com os pesquisadores Ferrante e Schrarstzhaupt, eles foram unânimes e em dizer que os casos de covid-19 vão aumentar por causa da variante delta. E que as escolas não conseguem adotar qualquer medida de segurança capaz de proteger quem não foi vacinado – e sequer têm previsão de ser – contra o coronavírus. Eles estimam que, com mais crianças e adolescentes sendo expostos ao vírus nas escolas, o número de mortes nesse grupo vai aumentar.
O exemplo vem dos Estados Unidos. Com cerca de 50 milhões de crianças menores de 12 anos e que, por causa da idade, não têm autorização para serem vacinadas, os “casos pediátricos de covid-19 estão disparando ao lado de casos entre adultos não imunizados”, segundo reportagem da revista The Atlantic. De 15 de julho a 5 de agosto, o número de casos de covid-19 entre crianças até 12 anos saltou de 38.600 para 93.800, e as hospitalizações nessa faixa etária atingiram o maior índice desde o início da pandemia no país.
No Brasil, não há informação consolidada sobre o número de casos de covid-19 por faixa etária, mas um banco de dados que reúne informações do e-SUS e do Sivep-Gripe mostra que existe uma tendência de aumento nos resultados positivos de exames RT-PCR para covid-19 feitos em crianças e adolescentes até 18 anos, principalmente entre aqueles de 10 a 14 anos. Já nas faixas etárias maiores, a curva se mantém estável ou descendente.
Dados do Ministério da Saúde também indicam que as internações por covid-19 de crianças menores de cinco anos aumentaram 191% a partir de fevereiro de 2021. Até julho, foram mais de mil hospitalizações este ano, número que já supera o de 2020 inteiro.
Ferrante é doutorando em biologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o Inpa, e acompanhou muito de perto a situação em Manaus. O grupo de cientistas do qual faz parte alertou sobre a chegada da segunda onda da pandemia no Amazonas em um artigo publicado na Nature Medicine, um dos mais importantes periódicos científicos. O risco de uma terceira onda também foi avisado por ele com antecedência, mas as autoridades do estado ignoraram todos os alertas.
Utilizando um modelo epidemiológico padrão chamado Seir, o grupo identifica quantas pessoas em uma localidade estão suscetíveis, expostas, infectadas ou recuperadas em relação ao coronavírus e, assim, pode prever com antecedência o aumento de casos, ?de acordo com o crescimento da mobilidade urbana, que eleva a taxa de transmissão. Nesse momento, o alerta do cientista é para que os pais não mandem seus filhos à escola.
Schrarstzhaupt também analisa diariamente os rumos da pandemia no Brasil. Como coordenador da Rede Análise Covid-19, ele já se acostumou a ocupar a tela do próprio computador com painéis que mostram o aumento da mobilidade urbana por estados e municípios e a relação disso com o crescimento da taxa de infecção e de mortes provocadas pelo novo coronavírus. Seus gráficos vão para o Twitter e servem de base para os fios que o analista de dados faz, mostrando como a pandemia está se desenvolvendo e qual a tendência para as semanas seguintes. Com base nesses dados, ele tem certeza de que, não vacinadas, as crianças nunca estiveram tão em risco quanto agora. “Estamos oferecendo elas ao vírus”, afirmou.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida pelos especialistas em uma videochamada realizada em 9 de agosto.
Intercept – A volta às aulas, aliada ao surgimento da variante delta no Brasil, coloca crianças e adolescentes em risco maior do que estavam desde que a pandemia começou?
Isaac Schrarstzhaupt – O risco aumenta, porque aumenta a mobilidade, ou seja, [o número de] pessoas em contato com pessoas. E temos uma variante mais transmissível. A delta chegou em mais de 130 países, e isso significa dominância e alta transmissibilidade. E a gente está fazendo o que nesse cenário todo? Colocando mais pessoas nas ruas e não vacinadas, que são as crianças e os adolescentes. Estamos oferecendo elas ao vírus. Esse grupo nunca esteve tão em risco como agora, porque nós aumentamos a mobilidade e, além disso, o próprio vacinado tende a baixar a guarda em relação aos cuidados.
Lucas Ferrante – Não existe nenhum estudo que aponte que é seguro o retorno das aulas presenciais. Uma pesquisa da Fiocruz, feita pela pediatra Pamella Lugon, avaliou a taxa de contaminação de uma comunidade do Rio de Janeiro. Ela viu que havia baixa taxa de contaminação e de transmissão em crianças em isolamento social. E, quando a gente voltar a colocá-las na rua, nas salas de aula, no transporte público, veremos a mortalidade desse grupo aumentando. Lembrando que pessoas que tiveram contato natural com o vírus perdem a imunidade depois de um tempo; que pessoas imunizadas podem transmitir, embora tenham uma forma branda da doença; que crianças têm uma carga viral equivalente à dos adultos e que elas também transmitem, mesmo quando estão assintomáticas. Então, o Brasil ainda não viu o pior dessa pandemia.
Hoje, estamos com cerca de mil mortes por dia. Você acredita que vamos voltar a uma escala de 3 mil ou 4 mil mortes diárias? Tem algum estudo que indique esse risco?
Ferrante – É completamente possível chegarmos a essas taxas de mortes diárias novamente. Já temos divulgadas notas técnicas que apontam que o número de óbitos vai subir em todas as cidades que avaliamos.
Já estamos há um ano e meio com as escolas fechadas. Isso afetou a rotina das famílias e obrigou os professores a lidarem com aulas remotas, o que prejudicou sobretudo o aprendizado das crianças pobres, que não têm acesso à internet. É razoável continuar defendendo que as escolas sigam fechadas?
Schrarstzhaupt – Eu faço uma analogia com a guerra. Se está havendo um bombardeio há um ano e meio, será que as pessoas vão se perguntar se podem sair entre uma bomba e outra? Ninguém está negando que os pais estão sofrendo, que é horrível toda essa situação. Mas também não podemos relaxar as medidas enquanto as bombas estão caindo. O que a gente precisa é acabar com o bombardeio. Isso significa baixar a taxa de transmissão. A Austrália é um exemplo. Lá, nem estão dando muita bola para a vacinação, porque eles reduzem a transmissão com medida não-farmacológica. São vários os anúncios de lockdown por 10, 12, oito dias. Houve cinco mortes agora [em agosto] e as últimas tinham ocorrido em 27 de outubro de 2020, duas mortes. O ideal é que sejam feitas duas coisas: baixar a taxa de transmissão e vacinar. Nós estamos fazendo o inverso.
‘Todo dia tem criança trocando máscara com o coleguinha, outra chorando com a máscara encharcada, outros jogando a máscara como elástico…’
Ferrante – Temos um discurso extremamente nocivo de que precisamos retornar à normalidade. A questão é que não estamos na normalidade. Nessa época do ano passado, tínhamos acabado de passar da primeira onda, mas era óbvio que as escolas não poderiam voltar. Hoje, as pessoas estão se tornando mais complacentes com a mortalidade diária. Não estamos no final da pandemia. A vacinação no Brasil é medíocre. Em alguns estados, 15% da população receberam as duas doses. Isso não é suficiente para colocar os alunos nas escolas.
Quando isso será possível?
Ferrante – Antes, precisamos frear a transmissão comunitária e ampliar a vacinação. Precisamos avançar para 80% ou até 95% de toda a população vacinada, inclusive os jovens. Estão pautando retorno de professor com uma dose de vacina ou que acabou de tomar a segunda dose. Isso é absurdo, porque essas pessoas podem se contaminar e morrer – elas não têm imunidade. Só é seguro retornar às aulas presenciais quando todo mundo que estiver em sala, tanto professor quanto aluno, estiver imunizado, 28 dias depois da segunda dose.
Tendo em vista o ritmo atual de vacinação, quando será possível o retorno à sala de aula?
Schrarstzhaupt – Se vacinarmos um milhão de pessoas por dia, essa era a média de aplicação de primeiras doses entre os dias 3 e 10 de agosto, precisamos de mais 50 dias para vacinar toda a população adulta do Brasil – mais ou menos 160 milhões de pessoas. Mas, como as crianças pegam e transmitem, eu acredito que precisamos vacinar 90% da população total, não só a adulta.
Ferrante – A velocidade com que isso vai acontecer depende do tempo que o governo federal demorar para adquirir vacinas. Se, hoje, não podemos retornar às aulas com segurança, a responsabilidade é do presidente Bolsonaro, que fez um papelão no ano passado com discursos antivacina. O Brasil tem que triplicar a taxa de vacinação para que, talvez, consigamos voltar com segurança em março do ano que vem.
Crianças de zero a 12 anos ainda não podem se vacinar. Nesse caso, como fica o retorno dessa faixa etária à escola?
Schrarstzhaupt – Para dar segurança a eles, precisamos reduzir a taxa de transmissão do vírus. Deixar a solução de tudo só nas vacinas e continuar transmitindo a todo vapor vai causar aumento no número de casos, pois a vacinação não impede a transmissão. A consequência é que haja óbitos totalmente evitáveis. É só ver como foi o último réveillon em Wuhan – todo mundo aglomerado e zero mortes decorrentes disso, pois eles eliminaram o vírus da comunidade.
; O vírus está mutando, e nós vamos ficar com vacinas ineficazes daqui a pouco’.
Ferrante – O retorno deverá ser efetivado apenas quando as vacinas se mostrarem seguras para essa faixa etária, o que deve levar meses. Nós precisamos lembrar que, se não temos taxa de mortalidade alta entre crianças, é porque elas ficaram isoladas.
Essa questão da mobilidade urbana, principalmente no transporte público, é uma variável importante para o controle da taxa de transmissão. Temos o exemplo do que aconteceu em Manaus, com o retorno das aulas presenciais no segundo semestre de 2020. Quais foram as consequências disso?
Ferrante – A mobilidade do transporte público aumentou 30% em setembro do ano passado, quando voltaram as aulas nas escolas públicas. Exatos 21 dias [depois], que é o ciclo viral, o número de internações e óbitos explodiu em Manaus. Já começava a segunda onda. Dia 15 de novembro, quando aconteceram as eleições, já tinham 2 mil casos da variante gama ativa [segundo estudo ainda não publicado de Ferrante]. Ela não surgiu em decorrência das festas de final de ano ou das eleições, porque no início de novembro já existia. As festas, logicamente, contribuíram para ampliar a transmissão comunitária, as eleições também, mas não fizeram com que a variante surgisse. O que causou isso foi o retorno das aulas presenciais, a maior mobilidade urbana.
Schrarstzhaupt – O caso do Chile deveria ser emblemático. Eles vacinaram idosos, acharam que estava tudo beleza e jogaram a taxa de mobilidade lá pra cima. O que aconteceu foram os hospitais lotados com pessoas de 30 anos. A proporção de casos graves entre jovens é menor, sim, mas se você está infectando milhares deles, então vão ter mais doentes.
Ferrante – Um estudo que saiu na Science avaliou medidas restritivas de 41 países e viu que o fechamento de escolas e universidades é a segunda medida mais eficiente para frear a transmissão comunitária. A primeira é restringir as reuniões a menos de 10 pessoas. Algumas variáveis foram medidas, como a abertura de atividades não essenciais, e a transmissão viral foi menor em restaurantes, por exemplo, do que dentro das escolas. É importante dizer que determinados estabelecimentos não inflam tanto a mobilidade urbana e o transporte público porque as pessoas normalmente utilizam o carro próprio e também há menos aglomeração do que 10 pessoas. Nas salas de aulas, são dezenas de crianças em um local fechado e, algumas vezes, com ar-condicionado.
Mesmo que os restaurantes ofereçam menos risco que as escolas, é razoável frequentá-los nesse momento?
Schrarstzhaupt – De maneira alguma. Restaurantes têm risco alto, pois é necessária a retirada das máscaras para comer. E a transmissão comunitária altíssima, como ocorre no Brasil atualmente, deixa qualquer lugar arriscado.
Ferrante – Restaurantes, de fato, são mais seguros do que escolas. Um momento que será necessário fechar os restaurantes será quando os números de casos relacionados à variante delta começarem a aumentar. Municípios que já registram a delta acima de 30% das infecções deveriam estar pensando em medidas restritivas, incluindo alguma parte do comércio. Mas, para medir isso, precisaria ter um programa de testagem, inclusive de pessoas assintomáticas. O Brasil não tem boa referência metodológica para inferir o grau de infecção de acordo com a variante, porque testa apenas quem dá entrada nas UPAs.
Pesquisadores da USP desenvolveram um modelo matemático que estima o aumento de casos da covid-19 com a reabertura das escolas, simulando cenários com diferentes protocolos de segurança. Por exemplo, com uso incorreto de máscaras, há risco de um aumento de 1.141%. Mas, com o uso correto pelos estudantes, professores utilizando máscaras PFF2, monitoramento de casos suspeitos, turmas alternadas e redução da carga horária efetiva, o risco é reduzido para até 10%. Nesse cenário perfeito, mas diante da variante delta, seria possível o retorno das aulas presenciais?
Schrarstzhaupt – A resposta está aí. É como dizer que seu filho não tem nenhum risco, desde que ele não seja criança. É uma coisa meio absurda. Minha esposa é professora e o que ela me conta é que todo dia tem criança trocando máscara com o coleguinha, outra chorando com a máscara encharcada, outros jogando a máscara como elástico… Se em um cenário perfeito a gente ainda tem risco, mesmo que de 10%, imagine com esse cenário perfeito que não existe.
‘É como se eu estivesse com um megafone na rua, gritando, mas quem está com o microfone no palco é o governo, e ele não está usando’.
Ferrante – Uma coisa importante é que nunca se consegue prever todas as variáveis nesses modelos. Não é só o aluno em sala de aula. É preciso considerar se ele está saindo de casa e passando em algum outro lugar, o contato com pessoas no transporte público, na rua ou com os colegas da escola, na hora que os professores não estiverem vendo. Nesse sentido, eu sou bem pessimista, porque infelizmente é o que a gente vê que já tem acontecido. O vírus está sofrendo mutações, e nós vamos ficar com vacinas ineficazes daqui a pouco. Estamos ampliando a transmissão comunitária antes dessa vacina chegar de fato à população. E as crianças são chave nisso, porque elas transmitem tanto quanto adultos.
São Luís, capital do Maranhão, já está vacinando adolescentes de 12 anos. Seria seguro voltar às aulas presenciais por lá?
Schrarstzhaupt – As pessoas não vivem em bolhas. Não podemos achar que vamos vacinar as crianças e colocá-las em uma cidade-bolha. O que funciona é a cobertura vacinal, e não a vacina em si. E cada vez que a gente deixa o vírus mutar e ficar mais transmissível, ele vai tornando a necessidade de cobertura vacinal cada vez maior. É o exemplo de São Luís. Você vai proteger um pequeno grupo, mas está mantendo o risco. Tem que reduzir a transmissão e, só depois disso, a gente fala em aulas, em comércios, em eventos.
Ferrante – Quer abrir um negócio que vai funcionar nesse momento? Monte uma funerária especializada em caixões de crianças. Pode parecer chocante, mas é verdade. Vai haver uma mortalidade grande de crianças, principalmente com o espalhamento da variante delta. Não adianta proteger determinado grupo e continuar mantendo a transmissão comunitária. O problema é que não compraram vacinas. Se quer voltar, tem que ampliar o programa de vacinação.
Existe algum indício de que vai haver aumento no número de mortes de crianças? Algum dado indica essa tendência?
Schrarstzhaupt – O que está acontecendo nos Estados Unidos é o maior indício. O aumento de casos, hospitalizações e óbitos muito provavelmente é causado pela variante delta e sua maior transmissibilidade. Eles conseguiram reduzir os agravamentos e óbitos em relação ao período pré-vacina, mas mesmo assim são tantos casos que o aumento ainda é exponencial, o que significa que, além das vacinas, precisamos de medidas não-farmacológicas.
O Reino Unido chegou a internar cerca de 100 crianças por semana com uma síndrome rara pós-covid, e pesquisadores estão investigando o que tem sido chamado de covid longa em crianças e adolescentes. Elas estão mais sujeitas a ter sintomas persistentes, mesmo após curadas?
Schrarstzhaupt – No Reino Unido, o aumento de casos levou a um pico e agora estabilizou, mas em um patamar bastante alto, o que preocupa. Os registros de covid longa em crianças aumentaram em número absoluto justamente pela quantidade absurda de infecções nessa faixa etária ao mesmo tempo.
Ferrante – Nós ainda não temos compreensão se a covid longa afeta mais crianças do que adultos. Sabemos que todos estão sujeitos à síndrome pós-covid, com sintomas que se estendem por meses. Para as crianças e adolescentes, isso representa um problema maior, porque afeta a fase de crescimento e de desenvolvimento natural. Estamos criando uma geração de sequelados.
Quais são os modelos que cada um de vocês utiliza para fazer os alertas?
Ferrante – Temos uma equipe vasta e multidisciplinar. São oito pessoas fazendo isso, entre elas médico epidemiologista, infectologista e três matemáticos. Utilizamos um modelo padrão, o SEIR, que identifica os suscetíveis, os expostos, os infectados e os recuperados. É importante dizer que o modelo Seir traça o perfil da localidade. A gente sabe, em cada população, o número total de pessoas que estão suscetíveis ao vírus, a taxa em que ele se propaga dentro da comunidade e o número de pessoas que têm alguma imunidade. A gente não faz alertas para um estado inteiro, porque cada cidade está em um ponto epidemiológico diferente e isso pode nublar o modelo Seir. No Paraná, por exemplo, pegamos 15 cidades para monitorar. O modelo confere com precisão o número de expostos ao vírus, usando a taxa de mobilidade urbana como uma das variáveis. Se há aumento da taxa de transmissão, a gente consegue projetar o aumento de casos que vai acontecer lá na frente.
‘Os governos estão tentando normalizar mil óbitos por dia. Quando a gente chegar nos 600, as pessoas vão vibrar?’
Schrarstzhaupt – Eu faço, para todos os municípios e estados, a média móvel da taxa de crescimento, com um histórico dos últimos 20 dias. Quando boto essa taxa em um gráfico, ela me mostra se o número de casos ficou estável, se cresceu ou se caiu. Mesmo que esteja caindo ou crescendo, uma coisa interessante que esse gráfico mostra é o ângulo. Se está caindo com uma velocidade constante, é bom. Sinal de que estamos fazendo alguma coisa correta. Mas, quando a velocidade de queda no número de casos reduz, isso indica reversão da tendência. Se nada for feito imediatamente a partir desse ponto, haverá estabilização e, em seguida, crescimento com curva exponencial.
Isaac, você tem um painel com os casos, óbitos e taxa de crescimento de notificações em todos os estados e municípios do Brasil. O que esses gráficos nos dizem sobre a situação da pandemia no país agora?
Schrarstzhaupt – Estamos freando a velocidade da queda no número de casos. Isso aconteceu em agosto de 2020. Eu fiquei meio assim de dar o alerta naquele mês, porque estava todo mundo feliz com o número de casos baixando. Mas, em setembro, eu avisei que estávamos entrando em estabilização e, em seguida, haveria um aumento. Tomei uma pancada na cabeça, porque as pessoas não acreditavam em segunda onda, mas isso já aparecia nos gráficos. O que eles mostram, hoje, é essa reversão na tendência de queda. No Centro-Oeste, principalmente Goiás e Distrito Federal, já tem aumento [em relação aos últimos 15 dias]. Tento ser calmo para não apanhar tanto. Eu digo que acendeu a luz amarela no semáforo. É hora de tirar o pé do acelerador, olhar para os lados, ver o que está acontecendo. Eu não quero soar alarmista, mas desde meados de julho deste ano há essa desaceleração na queda do número de casos.
Como pesquisadores, a gente costuma sempre dizer que é provável acontecer. Mas, no Brasil, podemos decretar. Por isso, vamos para as redes sociais. Eu tento fazer essa redução de danos com a comunicação, para ir alertando. Mas não consigo atuar como um governo, fazendo uma comunicação ampla. É como se eu estivesse com um megafone na rua, gritando, mas quem está com o microfone no palco é o governo, e ele não está usando.
Nos EUA, a maioria da população já está vacinada, mas a variante delta fez aumentar o número de casos e de mortes – 99% das pessoas que morreram, contudo, não tinham se vacinado. O que isso ensina para o Brasil? O que a gente tem que fazer imediatamente?
Schrarstzhaupt – Ideal é restringir a mobilidade. Pessoas têm que ficar longe de pessoas para cortar a cadeia de transmissão e de forma rápida. E, claro, acelerar a vacinação. EUA vacinou até 5 milhões de pessoas por dia. O problema de dar essa resposta é que a gente sabe que isso não vai acontecer. Um dia reclamaram comigo no Twitter, porque eu fico pedindo lockdown. Não é porque não vão fazer que eu vou deixar de falar que isso precisa acontecer nesse momento. Mas os governos estão fazendo o oposto, tentando normalizar o número de mil óbitos por dia. Quando a gente chegar a 600 óbitos diários, as pessoas vão vibrar?
Ferrante – O Brasil precisa de um lockdown nacional e não vai se ver livre do coronavírus enquanto não o fizer. Mas nós temos dois problemas muito grandes. O primeiro é o presidente da República, e o segundo é a falta de um auxílio emergencial. Se o Bolsonaro calasse a boca dele e a gente implementasse um auxílio para a população ficar em casa, a gente poderia resolver essa pandemia em um mês e meio. Poderíamos chegar a zero casos em um mês, porque não teria transmissão comunitária. É simples assim. Mas a ignorância do presidente é letal. Com Bolsonaro, o Brasil não vai superar essa crise e, sim, nós teremos mais uma onda com a variante delta. E os pais não devem enviar seus filhos para a escola. Não existe certeza de segurança em nenhuma delas no Brasil.
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