Casais ricos do Amapá driblam Lei da Adoção e tiram crianças de famílias pobres com apoio do judiciário

A filha de quase 2 anos de Jéssica Gabrieli estava na casa da avó com os irmãos de 4 e 5 anos quando oficiais de justiça de Macapá levaram as três crianças para um abrigo após denúncias de negligência familiar. Era setembro de 2018. Seis meses depois, em março, os meninos estavam de volta, mas a bebê Mariana*, não. Sua guarda foi entregue a um casal na mesma época em que as outras crianças foram devolvidas para a mãe, em uma decisão que até hoje é questionada por Jéssica, pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público do Amapá. E esse não é um caso isolado.

Há ao menos 187 processos de “adoção cumulada com destituição do poder familiar” em andamento no Amapá atualmente, segundo dados que obtive via Lei de Acesso à Informação. São casos em que casais entram na justiça para ficar com crianças que têm famílias, semelhante ao que ocorreu com Jéssica, e, por isso, não estão legalmente disponíveis para adoção. Eles driblam o sistema e conseguem ter uma criança em casa em pouco tempo.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é claro: filhos devem ficar com os pais, posição reforçada pela Lei da Adoção, de 2009. Se isso não for possível, a família extensa, como avós, tios e primos, tem a preferência. Somente em último caso, e após concluído o processo de destituição do poder familiar, é que a criança fica disponível para ser adotada por uma família sem vínculos de sangue. Para dar mais transparência e segurança a esse processo, o Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, criou, em 2008, o Cadastro Nacional de Adoção e, mais recentemente, o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, o SNA. O ideal é que toda criança que pode ser adotada esteja incluída nesse cadastro, assim como quem pretende adotar. Forma-se assim a fila da adoção.

O que tem acontecido em Macapá é que essa ordem não é cumprida, como mostram os quase 200 processos de adoção somados a pedidos de destituição do poder familiar. Enquanto as ações se acumulam, no Sistema Nacional de Adoção não há registro de nenhuma criança adotada na capital do Amapá desde 2008. Em todo o estado, o sistema do CNJ registra apenas 11 adoções no mesmo período, sendo dez delas realizadas pela Vara da Infância e Juventude de Santana, município a 21 quilômetros da capital. No entanto, por e-mail, a assessoria de imprensa do CNJ me informou que foram realizadas 19 adoções em Macapá nesse período.

Os dados contraditórios reforçam as suspeitas de defensores públicos e promotores com quem conversei de que as adoções realizadas na cidade não têm seguido o trâmite legal e, por isso, as crianças jamais foram incluídas no cadastro nacional.

Tive acesso à íntegra de quatro ações de adoção com pedido de destituição do poder familiar que correm em segredo de justiça no Tribunal do Amapá. Em todos os processos, as famílias passaram na frente de quem já estava na fila para adotar uma criança – com a ajuda do judiciário local.

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Ilustração: Matheus Santa Cruz para o The Intercept Brasil

Vai pagar pelo resto da vida

Entre os responsáveis pela análise do caso de Jéssica e dos outros processos de adoção no tribunal, está Cyranette Miranda Ribeiro Cardoso, assessora jurídica do Juizado da Infância e Juventude de Macapá. Ela também é mãe adotiva via processo de “adoção cumulada com destituição do poder familiar”. Em entrevista ao site do tribunal, ela conta que sempre teve preferência pela adoção. Cyranette tem duas filhas: uma criança de 10 anos e uma jovem de 26 anos. Com a mais velha, diz, o processo foi “muito simples, adoção consentida, saiu da maternidade para nossa casa”. É a chamada adoção à brasileira, quando a mãe entrega o filho para outra pessoa criar. Já a criança, Cyranette levou da mãe e nunca mais devolveu.

Em setembro de 2011, Maria Angélica foi ao tribunal com a sua filha Sílvia*, ainda uma bebê de colo, buscar informações sobre um processo que respondia por negligência e maus-tratos contra os filhos mais velhos. Quando chegou ao Juizado, foi surpreendida com a acusação de que havia voltado a usar drogas. A assessora jurídica, então, disse que ela não podia cuidar da criança.

Como assessora jurídica do Juizado, Cyranette tem acesso a boa parte dos processos de adoção de Macapá. Foi se utilizando desse cargo que a servidora avaliou que a bebê “não tinha condições de ir para um abrigo, pois estava enfraquecida e com feridas abertas”. Por isso, resolveu que “seria melhor levá-la para sua casa”, como consta no processo que Cyranette moveu para adotar a criança. A disputa judicial durou mais de quatro anos e terminou em 2016 com a causa ganha e a adoção da filha de Maria Angélica.

As decisões mais favoráveis à assessora foram dadas pela juíza Ilana Kabacznik, que substituía o juiz titular César Augusto Souza Pereira quando ele entrava de férias ou tirava alguma licença do juizado. César se declarou impedido de julgar o caso por trabalhar com a assessora há 19 anos. Em dezembro de 2014, na sentença que confirmou a destituição do poder familiar de Maria Angélica, a juíza Ilana reconheceu que ela estava longe do álcool e das drogas e que já tinha residência fixa, mas fez questão de registrar que aquilo não era suficiente. E acrescentou: “se caso Maria Angélica possa questionar quanto à possibilidade de pagar pelo resto da vida sob um erro que cometeu no passado, a resposta é SIM. Nosso futuro nada mais é do que consequência que plantamos no passado. Assim, se plantamos chuvas colheremos tempestades.”

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Trecho da decisão dada pela juíza Ilana Kabacznik.

Imagem: Reprodução/TJAP

Entrei em contato com Cyranette, que respondeu por WhatsApp que não poderia falar já que os casos envolvem processos e ela não recebeu autorização do tribunal. Por meio da assessoria de imprensa do tribunal do Amapá, a juíza Ilana ressaltou que os casos, além de envolver crianças, estão sob segredo de justiça e que ela, como juíza, “não pode e não deve se pronunciar”.

Em 2013, quando o processo ainda estava em andamento, Maria Angélica foi entrevistada em uma reportagem da Record sobre adoções irregulares no Amapá.

A denúncia dela e de outras famílias que se diziam vítimas de um esquema levou o promotor Aldeniz de Souza Diniz a investigar todos os processos de adoção em Macapá entre 2008 e 2013. À época, ele respondia pela promotoria da Infância e Juventude. Souza, segundo a reportagem, acreditava que servidores do Judiciário estavam facilitando adoções de crianças para amigos.

Por causa das declarações que o promotor deu para a Record TV e da investigação que ele iniciou, Cyranette o processou em 2015, pedindo uma indenização de R$ 200 mil por danos morais. Ele se aposentou em 2014, e o processo segue em andamento. As adoções irregulares também.

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Ilustração: Matheus Santa Cruz para o The Intercept Brasil

Criança escolhida por foto

No caso de Mariana, a filha de Jéssica, sua guarda foi entregue à também servidora do tribunal Adriana Priscila Ayres dos Santos, assessora de gabinete de um dos desembargadores do estado. Assim como ocorreu em outros dois casos que acompanhei, Adriana se aproveitou do programa de apadrinhamento promovido pelo tribunal do Amapá e não teve que enfrentar a fila da adoção.

O projeto é simples. Os “padrinhos” ou “madrinhas” se cadastram para receber, aos finais de semana, feriados e até aniversários, crianças que estão nos abrigos. A ideia é dar oportunidade de convívio familiar àquelas que têm menos chance de voltarem para suas casas ou de serem adotadas.

Em um artigo escrito em 2016, Cyranette admite que o apadrinhamento é usado como uma primeira etapa para a adoção. Segundo o texto, “grande parte dos processos de adoção surge da convivência oportunizada pelos programas de apadrinhamento natalino e apadrinhamento social”.

Padrinhos e madrinhas sequer deveriam estar habilitados a adotar, justamente para evitar que o programa seja distorcido. No texto, a assessora jurídica também critica a Lei Nacional de Adoção de 2009, que prioriza a família biológica e estabelece regras mais rígidas. Para a servidora, há “mecanismos que dificultam a inserção da criança na família substituta como, por exemplo, a inscrição prévia dos adotantes no Cadastro Nacional de Adoção”.

De acordo com um relatório do Núcleo de Assistência Psicossocial do juizado, Adriana “soube [das crianças] através de servidores” do tribunal em fevereiro de 2019. Ela e o marido “tiveram acesso à fotografia da infante [a bebê Mariana] e sentiram interesse em ter contato com ela”. Não está claro, no processo, como e nem por que essas fotos foram enviadas ao casal.

No início de março, eles levaram a filha de Jéssica para casa por meio do programa de apadrinhamento. Ela deveria voltar para o abrigo no dia 6, mas, já no dia 7, o casal pediu a guarda da menina. Eles alegaram que ela estava doente e precisava ser incluída no convênio médico da família. Ainda tentaram culpar Jéssica pelos problemas que a bebê apresentou no pulmão – mas ela já estava no abrigo há seis meses e havia sido apadrinhada por outra família nesse período.

Ao pedir a guarda, o casal disse estar ciente de que a menina não estava disponível para adoção, mas que isso não importava, “pois tudo o que querem é proporcionar ao infante tudo o que puderem de melhor, além de amor e cuidados incondicionais”. O argumento foi suficiente para convencer o juiz Roberval Pantoja Pacheco, que deu a guarda da criança ao casal no mesmo dia.

Aqui é preciso diferenciar o que é guarda de adoção: a guarda de uma criança pode ser dada pela justiça a uma família apenas temporariamente, em situações como necessidade de tratamento de saúde e outros casos urgentes. Mas os vínculos com a família de origem ficam preservados. Já a adoção é mais abrangente e irrevogável. A criança ganha uma nova família e tem alterado até mesmo o registro civil para constar o nome dos pais adotivos no lugar dos biológicos.

A justiça, porém, foi bem menos ágil para responder os pedidos de Jéssica. Ela foi ao Juizado da Infância e Juventude de Macapá no mesmo dia em que os filhos foram levados pelo Conselho Tutelar para explicar que morava com o noivo e que deixou as três crianças na casa da mãe apenas para trabalhar como diarista. Jéssica não tinha como pagar uma babá e a primeira creche pública da capital, a Tia Chiquinha, só seria inaugurada dois meses depois, em novembro de 2018. Ela ainda voltaria muitas vezes ao tribunal e ao abrigo, na tentativa de ter a menina de volta.

Na primeira audiência em que foi ouvida pelo juiz, um mês depois que as crianças estavam no abrigo, Jéssica repetiu que os filhos estavam na casa da sua mãe porque ela precisava trabalhar. Mas o magistrado avaliou que naquele momento não haveria “como deliberar acerca do destino das crianças” e manteve Mariana e os irmãos no abrigo.

Questionei o TJ-AP e Adriana, através de sua advogada e da assessoria de imprensa do tribunal, sobre o caso, mas não tive retorno.

‘Situação mais favorável’

Quem representa Adriana e o marido é a advogada Patricia Mel Xavier, que foi estagiária do Juizado da Infância e da Juventude. Ela também defende Cyranette no processo contra o promotor aposentado Souza. E já defendeu outros dois servidores do judiciário em casos de adoção cumulada com destituição do poder familiar: um motorista e outra assessora jurídica. Em consulta ao sistema do Tribunal de Justiça do Amapá, é possível identificar que, desde 2017, a advogada atuou em ao menos 21 casos como esses, em que a criança não estava disponível para adoção.

Em audiência no dia 21 de março de 2019, no mesmo mês em que a advogada ajudou Adriana a conseguir o apadrinhamento da filha de Jéssica, técnicos do abrigo onde as crianças estavam disseram ao juiz que o irmão de Mariana, de 5 anos, era “bem danado, razão da dificuldade de ser apadrinhado”. Acrescentaram que ele e o filho mais velho de Jéssica, de 6 anos, queriam ficar com a mãe, e que a equipe do abrigo era favorável. O juiz Pacheco, então, autorizou os dois a voltarem para casa.

‘Perder as esperanças e esquecer minha própria filha porque as pessoas que estavam com ela tinham mais dinheiro que eu’.

O irmão de Jéssica, de 10 anos, que foi levado para o abrigo com os filhos da diarista e as irmãs dela de 13 e 14 anos, já estava com uma tia desde fevereiro de 2019. A mãe dele havia concordado em entregar a guarda do menino à irmã, pois assim ele continuaria na família – a ordem judicial que resultou na retirada das crianças da família provinha de um relatório do MP que apontava “negligências; sobretudo abandono material e intelectual” das crianças. Tudo isso agravado pelo alcoolismo da mãe de Jéssica e do seu marido, Francisco Alves Barros.

As adolescentes também voltaram para casa porque, segundo o juiz, o problema que levou ao “acolhimento institucional das adolescentes fora superado”. Para a justiça, estava provado que a família tinha “fortes vínculos de afinidade/afetividade”. Apenas Mariana, a filha de 2 anos de Jéssica, cuja guarda já havia sido dada ao casal Adriana e Silva, não voltou. Mesmo reconhecendo que a mãe tinha condições de cuidar dos filhos, a ponto de ter de volta os dois meninos mais velhos, o juiz avaliou que a bebê estava em “situação mais favorável na família substituta”. Entrei em contato com o juiz por meio da assessoria de imprensa do tribunal, mas ele também preferiu não se manifestar a respeito dessa decisão.

Por e-mail, Patrícia disse que “o conhecimento adquirido quando de tal estágio” lhe deixou “mais preparada para atuar nessa seara”. A advogada afirmou também que foi procurada por Adriana para atuar no seu caso e que mantém relação “cordial e respeitosa” com servidores do tribunal, principalmente do Juizado da Infância e Juventude.

Quando conversei com Jéssica por telefone sobre o caso, ela me contou que, em uma das vezes em que foi ao abrigo, uma funcionária lhe disse para “perder as esperanças e esquecer minha própria filha porque as pessoas que estavam com ela tinham mais dinheiro que eu”. Como assessora de gabinete de um desembargador, Adriana ganha cerca de R$ 10 mil por mês. Muito diferente da situação financeira de Jéssica, que sustentava os filhos com cerca de R$ 400 que ganhava como diarista, mais a renda do companheiro, de R$ 2 mil.

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Ilustração: Matheus Santa Cruz para o The Intercept Brasil

Famílias ricas têm preferência

Responsável por boa parte dos relatórios realizados com as famílias em processos de adoção em Macapá, a assistente social Valdirene Quaresma Ribeiro tem dois filhos adotivos, um deles também adotado após um processo de adoção junto com pedido de destituição do poder familiar. Nos casos que analisei, ela destacou a renda das famílias que tentavam a adoção na justiça – entre R$ 15 mil e R$ 22 mil –, e se colocou contra o retorno das crianças à família biológica.

Foi Valdirene quem assinou o relatório que deu parecer favorável à adoção de Luan*, filho de Lilian Batista dos Santos, que tinha cerca de 2 anos quando chegou ao abrigo, em dezembro de 2018. O menino foi levado ao abrigo por agentes do Conselho Tutelar de Macapá depois que funcionários de um hospital em que ele foi atendido denunciaram um quadro de negligência, e o Conselho concluiu que os pais, dependentes químicos, não tinham condições de cuidar da criança.

De acordo com o processo, os tios paternos de Luan, Cleoneide Balieiro Pinheiro e João Neres Freitas dos Santos, souberam que o sobrinho havia sido levado para o abrigo três dias depois, e logo foram visitá-lo para dizer que queriam a sua guarda. Mesmo assim, a criança foi entregue no final de dezembro à pastora Simone Maria Palheta Pires e ao seu marido Elias Rodrigues da Fonseca para passar o Ano Novo, por meio do programa de apadrinhamento. Nas redes sociais, a pastora comemorou que seria mãe novamente.

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Logo após apadrinhar uma criança para as festas de fim de ano, a pastora Simone comemorou no Instagram estar sendo “mãe de bebê de novo”.

Imagem: Reprodução/Instagram

O casal, como a assistente social Valdirene enfatizou em relatório, tem “renda aproximadamente de R$ 22.000,00 mensal”. Já os tios “sobrevivem com aproximadamente R$ 2.000,00″. Pela lei, eles deveriam ter a preferência, mas esses R$ 20 mil que separavam a renda das duas famílias fizeram diferença.

No dia 7 de janeiro de 2019, a pastora e o marido entraram com o pedido de guarda e, no dia 9, iniciaram o processo de habilitação para adoção. Nessa mesma data, os tios do menino pediram à justiça para levá-lo para casa, mas já era tarde. A guarda provisória foi concedida para a pastora e seu marido. Até essa data, a família biológica sequer tinha sido ouvida em uma audiência com o juiz.

A Defensoria Pública contestou a decisão, mas a criança continuou com o casal. Um primeiro relatório entregue pelos profissionais do abrigo em fevereiro de 2019, que recomendava que o menino ficasse com os tios, foi desconsiderado. A pastora alegou ter tido, na igreja, desavenças pessoais com a assistente social responsável pelo texto.

‘A condição econômica jamais poderá ser crucial na escolha da família substituta’.

A justiça determinou que fosse feito um novo relatório. O texto, desta vez, assinado por Valdirene, foi entregue quatro meses depois. Ao contrário dos profissionais do abrigo, ela considerou que a criança não deveria ficar com os tios. Entre outras justificativas, argumentou que eles moravam em uma região alagada, conhecida na cidade como “área de ponte”, na periferia de Macapá. Na análise da assistente social, isso poderia ser perigoso para a criança. Já o outro casal, escreveu Valdirene, tem uma moradia “edificada em alvenaria, 3 quartos (todos suítes), sala, cozinha, piscina, biblioteca e 3 banheiros, guarnecida de eletricidade e água encanada”. A conclusão do relatório foi que os pastores poderiam fornecer “o necessário para um desenvolvimento saudável”, enquanto os tios paternos viviam em um local “insalubre para o bom desenvolvimento de uma criança” – outra forma de dizer que eles eram pobres.

Em agosto, a Defensoria Pública pediu a impugnação desse relatório por considerá-lo “preconceituoso” e “estigmatizante”. O promotor Alaor Azambuja, titular da promotoria da Infância e Juventude de Macapá, concordou. O texto, escreveu, criminaliza a pobreza. Para o promotor, a condição econômica jamais poderá ser crucial na escolha da família substituta, “pois, se assim não fosse, num país com enormes desigualdades sociais de oportunidades, estar-se-ia relegando mães pobres e seus familiares em presas fáceis de outros com maiores recursos financeiros – ou com influências de toda sorte”.

Alaor ainda sugeriu que os tios fossem autorizados a visitar o sobrinho, mas eles só conseguiram encontrá-lo três vezes. Nas visitas, a pastora Simone interferiu “no processo de readaptação da criança à família biológica” e não deixou que os tios ficassem sozinhos com o menino, como informou a psicóloga do tribunal. O quarto encontro, que deveria ter sido realizado no dia 6 de dezembro de 2019, não aconteceu porque ela sequer levou a criança. A psicóloga alertou que o longo tempo entre as visitas “inviabiliza a aproximação da criança” com a família natural.

Por meio da assessoria de imprensa do tribunal, perguntei se Valdirene gostaria de dar a sua versão sobre o que está nesta reportagem, mas não tive resposta.

A última audiência para decidir com quem ficará o menino deveria ter acontecido em março de 2020, mas a data foi remarcada porque a advogada da pastora Simone iria fazer uma cirurgia. O caso ainda está em andamento na justiça. Enviei algumas perguntas para a pastora por meio da sua advogada, que respondeu apenas que não havia nada a declarar.

A juíza Stella Simonne Ramos, porém, parece antecipar qual será o seu entendimento. Ao determinar que as visitas dos tios fossem quinzenais e não duas vezes por semana, como pediam os tios e o Ministério Público, ela argumentou a favor da pastora e do marido e disse que “o ECA prioriza não apenas relação de parentesco, mas consanguinidade com laços afetivos, o que vejo no presente caso”. A juíza Stella também não se manifestou.

Por e-mail, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, desembargador Rommel Araújo de Oliveira, me respondeu que não poderia falar sobre os casos porque os processos estão “sob o manto do segredo de justiça” e que enviou as questões à Comissão Estadual Judiciária do Amapá, ao Juizado Especial da Infância e Juventude de Macapá e a todos os magistrados e servidores citados. Nenhum deles, porém, respondeu às minhas perguntas.

Processos atrasados, vínculos perdidos

O que também atrasa os processos de adoção é a demora do Núcleo de Atendimento Psicossocial para realizar os relatórios sociais com as famílias. Em três processos a que tive acesso, há ofícios nos quais Valdirene informa que não fez os estudos sociais “em virtude de expressiva demanda de processos, e o número reduzido de assistentes sociais no setor” – ao todo, três assistentes sociais trabalham no tribunal.

A demanda que alega existir, porém, não foi um empecilho no processo de adoção de Cyranette. Em apenas 10 dias, Valdirene entregou o relatório que foi decisivo para que a colega de tribunal ganhasse o caso. “Às vezes, [o que] melhor atende aos interesses do infante (…) [é] a entrega à adoção”, escreveu. Já no processo de Jéssica, ela levou quase oito meses para fazer o mesmo trabalho.

Em janeiro de 2020, Valdirene respondeu a uma acusação na corregedoria do tribunal por ter demorado quase um ano para fazer um relatório. A denúncia acabou arquivada pela ausência “prática de alguma conduta irregular, imprópria ou constitutiva de ilícito administrativo”. O juiz que analisou o caso também considerou que o Núcleo de Atendimento Psicossocial, que tem apenas três assistentes sociais, enfrenta grandes dificuldades para realizar o seu trabalho.

É uma sensibilidade que a justiça do estado não parece estender às famílias que brigam por seus filhos. Em maio de 2019, Adriana e o marido entraram com o pedido de destituição familiar, que poderá levar à adoção formal da filha de Jéssica. Apesar de o Ministério Público do Amapá já ter dado parecer favorável tanto as visitas de Jéssica à bebê quanto ao retorno da criança para a família, a juíza Stella negou os pedidos, argumentando que “a retirada abrupta da criança, que, diga-se, pouco conviveu com a genitora, do lar que a acolheu, pode causar-lhe sofrimento e dano emocional”.

Porém, a falta de convivência de Jéssica com a filha, alegada pela magistrada, foi provocada pela lentidão dos próprios colegas. Uma audiência urgente pedida pelo Ministério Público em setembro de 2019 para ouvir a mãe e dar a ela o direito de visitar a menina só foi realizada quase um ano depois, em outubro de 2020.

Segundo Jéssica, na última audiência, ela foi autorizada a visitar a menina a cada 15 dias – ela não vê a filha desde 2018. Mas, até o início de março de 2021, me disse, o juizado ainda não havia entrado em contato para explicar como a visita iria acontecer. “Eu queria vê-la, saber como está, dar um abraço nela. Meu filho mais velho sempre pergunta quando a irmã vai voltar”. Atualmente, Jéssica diz que não sai mais para trabalhar por medo de perder definitivamente os outros dois filhos.

*Os nomes foram modificados para preservar a identidade das crianças.

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