Como eu e um grupo de professores da UFPel driblamos o negacionismo de Bolsonaro

Brazilian President Jair Bolsonaro speaks to the press after voting during the second round of municipal elections at the Rosa da Fonseca Municipal School, in the Military Village, Rio de Janeiro, Brazil, on November 29, 2020. - Brazilians go to the polls Sunday to chose mayors in 57 cities, including Sao Paulo and Rio de Janeiro, the most rich and populated, in a runoff marked by the economic crisis and an upsurge of the new coronavirus. (Photo by Andre Coelho / AFP) (Photo by ANDRE COELHO/AFP via Getty Images)

Foto: André Coelho/AFP via Getty Images

Com a onda de negacionismo que assola o Brasil, nunca é demais falar em ciência, nem que seja para lembrar que a terra não é plana. Para escrever essa coluna, me inspirei no Isaac, que, mais de 300 anos atrás, descreveu alguns fenômenos importantes. De forma exageradamente simplificada, a primeira lei do Isaac dizia que todo corpo continua em seu estado atual, a menos que seja forçado a mudar por forças aplicadas sobre ele. Já a terceira lei do Isaac diz que para cada ação, existe uma reação de igual intensidade na direção oposta.

Vamos aos fatos. Em março de 2020, com a chegada da pandemia de coronavírus no Brasil, nosso grupo de pesquisas em Epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas, a UFPel, propôs a realização de um estudo para avaliar a progressão do coronavírus no Brasil, o Epicovid-19. Ciente da gravidade dos fatos (que não se tratava de uma gripezinha), o Ministério da Saúde decidiu por financiar o projeto. Saímos do estado de repouso para o movimento, com aceleração constante. O Epicovid-19 foi iniciado e testou, entre maio e junho de 2020, quase 100 mil brasileiros e brasileiras, produzindo informações científicas até então desconhecidas no país:

1) A quantidade de pessoas expostas ao vírus, até o meio de 2020, era seis vezes maior do que o número de casos confirmados, que apareciam nas estatísticas oficiais.

2) Crianças possuíam o mesmo risco de contraírem o vírus SARS-CoV-2 do que adultos, mesmo que, felizmente, os casos tendessem a não ser tão graves.

3) Seis de cada 10 pessoas infectadas pelo SARS-CoV-2 perdiam o olfato e o paladar, um sintoma bastante específico desse vírus.

4) Entre os 20% mais pobres da população, o risco de infecção por SARS-CoV-2 era o dobro em comparação aos 20% mais ricos da população.

5) As pessoas indígenas apresentavam risco de infecção por SARS-CoV-2 muito superior aos demais grupos étnicos.

Com o nosso “corpo” se deslocando em linha reta, produzindo conhecimento sobre a covid-19 no Brasil, não havia a tendência de mudança, conforme Isaac nos ensinou em sua primeira lei. Eis que surge então a aplicação de forças nesse corpo. Num intervalo de poucas semanas, o Ministério da Saúde, incomodado com os resultados da pesquisa, atacou o Epicovid-19 duas vezes: primeiro, procurando minimizar o resultado do maior risco de contaminação entre os indígenas, e depois optando por descontinuar o financiamento da pesquisa.

Talvez pelo negacionismo, não notaram que a terceira lei do tal Isaac então atuaria. A reação, no sentido oposto à força original aplicada, foi devastadora. Em relação aos dados que mostravam o maior risco de infecção entre os indígenas, o resultado foi divulgado no dia seguinte nos principais veículos de comunicação do Brasil e do mundo. Semanas depois, os achados foram publicados no prestigiado Lancet Global Health. Se o objetivo era esconder a realidade dos fatos, eles acabaram ainda mais visíveis. Em relação ao corte de financiamento da pesquisa, a reação foi rápida e, também, devastadora. Em poucas semanas, o projeto obteve financiamento de outras instituições e o Epicovid-19, já conhecido naquela época, tornou-se ainda mais conhecido.

BRASÍLIA,DF,02.07.2020:ATUALIZAÇÕES-CORONAVÍRUS-COLETIVA-IMPRENSA - O professor reitor da Universidade de Pelotas Pedro Hallal durante coletiva de imprensa com equipe técnica do Ministério da Saúde, que atualiza dados e ações de enfrentamento no combate ao coronavírus no Brasil, no Palácio do Planalto, em Brasília (DF), nesta quinta-feira (2). (Foto: Wallace Martins/Futura Press/Folhapress)

Pedro Hallal, então reitor da UFPel, na coletiva de imprensa com equipe técnica do Ministério da Saúde em 2 de julho de 2020.

Foto: Wallace Martins/Futura Press/Folhapress

As próprias razões para o corte do financiamento acabaram sendo discutidas, até porque o Ministro da Saúde afirmou que estudos similares seriam realizados em breve, dos quais até hoje não se tem notícia. A falta de uma justificativa técnica minimamente convincente para a interrupção do financiamento fez com que muitos desconfiassem de motivação política. E aí vem a ironia: não eram esses que defendiam o Escola Sem Partido, cuja premissa básica (errada, diga-se de passagem) é de que a educação não deve ser politizada?

Fosse um jogo, o placar já era 2×0 para o time do Isaac contra o time do Jair, em dois contra-ataques rápidos e devastadores.

Aproxima-se então o final de 2020 e a Universidade Federal de Pelotas conduz seu processo eleitoral para escolha dos próximos dirigentes. Um processo democrático, conduzido respeitando integralmente a legislação vigente. Ao final do processo, o professor Paulo Ferreira Jr é eleito para o cargo de reitor da universidade pelos quatro anos seguintes.

A universidade também seguia seu movimento em linha reta e aceleração constante. Não havia qualquer justificativa para aplicação de forças capazes de modificar essa trajetória: desde Fernando Henrique Cardoso até Michel Temer, passando por Lula e Dilma Rousseff, havia uma tradição de respeitar a vontade das comunidades universitárias e nomear o primeiro colocado das listas tríplices enviadas ao governo federal nos termos da lei.

Mas, novamente, negacionistas que desconhecem as leis do Isaac, aplicaram forças autoritárias sobre o corpo que se deslocava. O governo desrespeitou o desejo da comunidade universitária e deixou de nomear o vencedor da eleição. E, novamente, conforme o Isaac nos ensinou mais de 300 anos atrás, veio a reação.

A UFPel, numa decisão inédita, resolveu anunciar a primeira dupla de reitores do Brasil: o eleito, professor Paulo Ferreira Jr, e a nomeada, a professora Isabela Andrade. Foi um contra-ataque certeiro. A gestão compartilhada virou um símbolo de resistência.

Ao sofrer o terceiro gol e notar que virou goleada, o time negacionista acusou o golpe e passou a utilizar uma metralhadora giratória (agora liberada para os “cidadãos de bem”). Desesperado, o time anti-ciência escalou então um jogador desconhecido, do sul do país, para atacar o time adversário.

Ao anunciar a decisão inédita em uma live com milhares de participantes, a UFPel escancarou ao Brasil a arbitrariedade da decisão do governo federal, de não respeitar a escolha democrática da sua comunidade. O assunto ganhou espaço na mídia e nas casas de milhões de pessoas.

Eis então que o jogador desconhecido, escalado pelo time negacionista, colocou os pés pelas mãos e partiu para mais um ataque, protocolando uma denúncia descabida, que faz referência a um período que a população brasileira gostaria de jamais reviver e, exatamente por isso, não pode jamais esquecer.

O problema é que isso foi feito, mais uma vez, sem considerar a terceira lei do Isaac, de que toda ação gera uma reação. A denúncia foi analisada pela Controladoria-Geral da União e o tiro saiu pela culatra. Ao assinar um Termo de Ajustamento de Conduta, sem reconhecimento de culpa, o time democrático garantiu o arquivamento do processo. E a reação da população brasileira foi maciça. Independentemente das posições ideológicas de cada um, todos os cidadãos brasileiros querem ter sua liberdade de expressão garantida.

Espero, sinceramente, que depois do 4×0, o time anti-ciência aprenda com a goleada e melhore, até porque já passou da hora de enfrentar o verdadeiro inimigo da atualidade, que é o coronavírus. Atacar cientistas não vai salvar vidas.

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