{"id":220604,"date":"2021-06-29T11:00:02","date_gmt":"2021-06-29T11:00:02","guid":{"rendered":"https:\/\/theintercept.com\/?p=361718"},"modified":"2021-06-29T11:00:02","modified_gmt":"2021-06-29T11:00:02","slug":"o-ritual-racista-da-imprensa-na-cobertura-do-caso-lazaro-barbosa","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/radiofree.asia\/2021\/06\/29\/o-ritual-racista-da-imprensa-na-cobertura-do-caso-lazaro-barbosa\/","title":{"rendered":"O ritual racista da imprensa na cobertura do caso L\u00e1zaro Barbosa"},"content":{"rendered":"
\n\"header-Lazaro\"\n

Ilustra\u00e7\u00e3o: Amanda Jungles\/The Intercept Brasil<\/p><\/div>\n

O jornalismo sempre apreciou<\/u> criar um monstro, uma aberra\u00e7\u00e3o, um ser inomin\u00e1vel que garantisse o interesse das audi\u00eancias. Pode-se at\u00e9 dizer que isso faz parte do jogo, afinal as empresas do setor n\u00e3o prestam caridade e vendem um produto, a not\u00edcia. Mas n\u00e3o d\u00e1 para justificar a manuten\u00e7\u00e3o dessa pr\u00e1tica apenas por conta do lucro, beb\u00ea. Dois motivos: primeiro, al\u00e9m de servir para algu\u00e9m ganhar dinheiro, a not\u00edcia tamb\u00e9m \u00e9 um servi\u00e7o, um bem coletivo, um meio para nos orientarmos e tomarmos decis\u00f5es. Segundo, essa “monstruosidade”, definida por quem tem o jornal na m\u00e3o e indica a quem merece viver ou morrer, geralmente possui cor, classe e religi\u00e3o. E \u00e9 a\u00ed que o tal bicho pega.<\/p>\n

O exemplo mais recente desse fen\u00f4meno produzido pela imprensa foi o insistente uso de palavras como “rituais”, “satanismo” e “bruxaria” nas mat\u00e9rias<\/a> sobre L\u00e1zaro Barbosa, morto\u00a0nesta segunda, 28,\u00a0pela PM ap\u00f3s 20 dias de fuga.<\/a> L\u00e1zaro \u00e9 acusado de matar uma\u00a0 fam\u00edlia no Distrito Federal, roubar propriedades, atirar em quatro pessoas e queimar uma casa. O hist\u00f3rico de L\u00e1zaro d\u00e1 conta de outros delitos cometidos por ele: em 2009, por exemplo, ele estuprou uma jovem de 19 anos tamb\u00e9m no DF. Recebeu uma senten\u00e7a<\/a> de 12 anos e 8 meses do juiz Marcelo Tocci, mas fugiu antes de terminar a pena.<\/p>\n

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Os crimes, a fuga e a hist\u00f3ria de L\u00e1zaro j\u00e1 rendem material suficiente n\u00e3o s\u00f3 para empresas e jornalistas se capitalizarem com coberturas espetaculosas (vide o programa Brasil Urgente, cujo apresentador Datena narrou tiros e a gritaria durante uma persegui\u00e7\u00e3o <\/a>na qual a equipe da Band estava presente), mas tamb\u00e9m enchem os olhos de populistas de extrema direita como Jair Bolsonaro. No dia 19 de junho, quando o Brasil atingiu a marca de 500 mil mortos oficialmente pela covid-19, o presidente usou<\/a> suas redes sociais somente para cortejar os policiais envolvidos na captura.<\/p>\n

Por\u00e9m, para manter o notici\u00e1rio “quente”, ve\u00edculos como o Metr\u00f3poles, Jornal do Commercio, Jornal de Bras\u00edlia<\/a>, G1 e mesmo a r\u00f3sea Capricho<\/a> cravaram que L\u00e1zaro praticou ou sacrificou v\u00edtimas em “rituais sat\u00e2nicos”. N\u00e3o deu outra: poucas horas depois da divulga\u00e7\u00e3o dessas informa\u00e7\u00f5es, integrantes de terreiros religiosos de locais como \u00c1guas Lindas, Girassol e Edil\u00e2ndia denunciaram trucul\u00eancia policial em pelo menos dez templos.<\/p>\n

\n\"metropoles-print\"\n

Uso de termos “bruxaria”, “satanismo” e “rituais” na cobertura da persegui\u00e7\u00e3o a L\u00e1zaro Barbosa.<\/p>\n

\nImagem: Reprodu\u00e7\u00e3o\/Metr\u00f3poles<\/p><\/div>\n

Na primeira cidade, a 50 quil\u00f4metros de Bras\u00edlia, o pai de santo Andr\u00e9 Vicente, um idoso de 81 anos, informou<\/a> que parte de seu terreiro foi alvo de duas buscas pela PM pouco antes das not\u00edcias sobre os “rituais” se espalharem. Em ambas, objetos e portas foram destru\u00eddos e o caseiro do local foi agredido com chutes e cano de ferro. O religioso ainda contou em depoimento que as imagens dos objetos religiosos divulgados pela pol\u00edcia como se fossem de L\u00e1zaro e amplamente divulgados pela imprensa s\u00e3o, na verdade, do terreiro comandado por ele.<\/b> Se confirmada a den\u00fancia, ser\u00e1 uma fraude ratificada por uma s\u00e9rie de ve\u00edculos da imprensa e que deveria entrar para a hist\u00f3ria do jornalismo brasileiro. Sugiro um nome para a sess\u00e3o: “Quando fomos objetivamente racistas”.<\/p>\n

Depois que L\u00e1zaro e fam\u00edlia foram classificados como satanistas pela imprensa que se limitou a repetir, sem qualquer senso cr\u00edtico, as declara\u00e7\u00f5es da pol\u00edcia, os pedidos de “mata” e “queima” come\u00e7aram a pipocar: no post no Instagram do Jornal do Commercio que falava dos rituais e da “magia negra” de L\u00e1zaro, por exemplo, uma pessoa afirmava que a m\u00e3e do fugitivo tamb\u00e9m era “feiticeira”. Outra leitora deu o veredito: “ent\u00e3o ‘d\u00e1 fim’ aos dois”.<\/p>\n

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Na outra ponta, felizmente, uma s\u00e9rie de pessoas apontou para o enorme preconceito presente nas mat\u00e9rias, fazendo com que alguns dos ve\u00edculos mudassem suas chamadas, um assunto trabalhado pelo \u00f3timo Farol Jornalismo<\/a> em sua \u00faltima edi\u00e7\u00e3o. O G1, por exemplo, pediu desculpas <\/a>e apagou as not\u00edcias coalhadas de preconceito. O UOL fez uma interessante cr\u00edtica a respeito<\/a> dessa cobertura, assim como o Nexo<\/a>.<\/p>\n

Seria, teria, poderia<\/h3>\n

Ningu\u00e9m precisa ser jornalista para saber que existem regras b\u00e1sicas na divulga\u00e7\u00e3o de informa\u00e7\u00f5es. Mas o notici\u00e1rio sobre o “satanismo” de L\u00e1zaro quebra v\u00e1rias delas: inconsist\u00eancia, dubiedade, m\u00e1 apura\u00e7\u00e3o, escuta de uma fonte \u00fanica s\u00e3o alguns dos problemas. H\u00e1, por exemplo, o farto uso de palavras como “teria”, “poderia” para apoiar a tal narrativa demon\u00edaca: no Metr\u00f3poles, uma chamada afirma: “Itens ligados \u00e0 doutrina satanista teriam sido localizados na casa dele<\/a>, no Entorno. Policiais o descrevem como psicopata”. Pois \u00e9: al\u00e9m de d\u00fabia, a chamada confere uma boa forma\u00e7\u00e3o em psicologia aos PMs, que j\u00e1 diagnosticam, no calor da busca, um dist\u00farbio mental grave no fugitivo. O relato privilegiado e \u00fanico dos policiais segue em frente e piora: “segundo a Pol\u00edcia Militar de Goi\u00e1s (PMGO), L\u00e1zaro alega estar possu\u00eddo por um esp\u00edrito.”<\/p>\n

Sejam todas e todos voc\u00eas bem-vindos a 1637!<\/strong><\/p>\n

Reparem bem que o que parece ser uma mera falta de cumprimento de regras t\u00e9cnicas est\u00e1, na verdade, anteparado em quest\u00f5es subjetivas, mas negadas pelo jornalismo que insiste em se dizer “neutro” e “imparcial”.\u00a0 N\u00e3o h\u00e1 nenhum problema na subjetividade, e sua presen\u00e7a \u00e9 vital no jornalismo: na verdade, o problema \u00e9 n\u00e3o assumi-la e assim negar que nossa cobertura jornal\u00edstica exp\u00f4s historicamente, de forma preconceituosa e violenta, uma grande parte da popula\u00e7\u00e3o brasileira.<\/p>\n

Essa opera\u00e7\u00e3o \u00e9 relativamente simples: enquanto se medem pela r\u00e9gua do “normal”, jornais e jornalistas descrevem toda uma sorte de pessoas e grupos percebidos como monstruosos, dissidentes, folcl\u00f3ricos, esquisitos, incivilizados, ex\u00f3ticos. Lembra aquele cl\u00e1ssico: “o inferno s\u00e3o os outros”.<\/p>\n

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A famosa chamada semanal do Globo Rep\u00f3rter (\u201c<\/i>Quem s\u00e3o? Como vivem? Do que se alimentam?\u201d)<\/i> \u00e9 um exemplo dessa pr\u00e1tica herdada de ci\u00eancias de base etnoc\u00eantrica, da cultura que se julga superior a todas as outras. J\u00e1 entrou para os anais do jornalismo um editorial da famosa revista National Geographic<\/a> cujo t\u00edtulo diz: “Por d\u00e9cadas, nossa cobertura foi racista. Para nos erguermos acima de nosso passado, devemos reconhec\u00ea-lo”. Um movimento importante de autocr\u00edtica que, infelizmente, nossa imprensa ainda n\u00e3o soube fazer, apesar de cobrar frequentemente a dos outros.<\/p>\n

Essa cobertura exotificante e racista, como j\u00e1 vimos nos casos de viol\u00eancia descritos pelo pai de santo Andr\u00e9 Vicente, tem impacto na integridade f\u00edsica e na exist\u00eancia de uma vasta popula\u00e7\u00e3o. Ela n\u00e3o se resume apenas aos povos de terreiros, mas a todas as pessoas e grupos entendidos como “desviantes” pelo jornalismo.<\/p>\n

\u00c9 t\u00e3o assustador quanto sintom\u00e1tico ver que as palavras usadas por ve\u00edculos “modernos”, que se utilizam de redes sociais e portais, estavam presentes l\u00e1 nos jornais do in\u00edcio do s\u00e9culo 20. Em 8 de fevereiro de 1912, o Jornal de Alagoas trazia a seguinte not\u00edcia: “Bruxaria: Xang\u00f4 em confus\u00e3o \u2013 mais notas e informa\u00e7\u00f5es \u2013 Os myst\u00e9rios da carne \u2013 ‘Santo’ de Santa Luzia do Norte<\/em>“<\/i>. No texto extremamente racista sobre o terreiro, lemos sobre “a fei\u00e7\u00e3o de\u00a0 s\u00edmio de Tio Salu”, “a risada de megera e olhos esgazeado de v\u00edbora de Tia Marcelina”, sobre os “c\u00e2nticos desafinados e o infernal batuque dos rituais religiosos”.<\/p>\n

A pesquisa est\u00e1 presente no artigo \u201cRacismo e Intoler\u00e2ncia Religiosa: Representa\u00e7\u00f5es do Xang\u00f4 nos jornais de Macei\u00f3 entre 1905 e 1940<\/a>\u201d, de Lwdmila Constant Pacheco. No texto, ela mostra como a popula\u00e7\u00e3o da capital alagoana era “informada” sobre os terreiros locais (conhecidos em parte do Nordeste como “xang\u00f4s”). Os adjetivos “fetiche ignorante”, “antros endemoniados” e feiti\u00e7aria barata” eram comuns. \u00c9 claro que religi\u00e3o e ra\u00e7a estavam essencialmente imbricados a\u00ed: havia os crist\u00e3os e brancos e havia os xang\u00f4s e pretos. Os donos dos jornais faziam parte do primeiro grupo. N\u00e3o \u00e9 muito diferente agora.<\/p>\n

N\u00e3o adianta contratar jornalistas negros e fazer campanha sobre “diversidade” quando se continua a olhar o mundo a partir de uma racionalidade entendida como superior. N\u00e3o adianta investir em aparato tecnol\u00f3gico e continuar a enquadrar grupos e pessoas como “ex\u00f3ticos” ou aberra\u00e7\u00f5es, usando a mesma r\u00e9gua do s\u00e9culo passado. As diferen\u00e7as, ainda bem, existem. Mas desigualdades s\u00e3o constru\u00eddas \u2013 e manchetes que terminam com gente morta ou espancada, tamb\u00e9m.<\/p>\n

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N\u00e3o adianta apostar em diversidade e continuar a enquadrar grupos e pessoas como ex\u00f3ticos ou aberra\u00e7\u00f5es, usando as mesmas r\u00e9guas de s\u00e9culos passados.<\/p>\n

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