{"id":26151,"date":"2021-02-03T13:13:22","date_gmt":"2021-02-03T13:13:22","guid":{"rendered":"https:\/\/theintercept.com\/?p=339302"},"modified":"2021-02-03T13:13:22","modified_gmt":"2021-02-03T13:13:22","slug":"em-legitima-defesa-matei-o-pistoleiro-que-matou-o-meu-marido","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/radiofree.asia\/2021\/02\/03\/em-legitima-defesa-matei-o-pistoleiro-que-matou-o-meu-marido\/","title":{"rendered":"‘Em leg\u00edtima defesa, matei o pistoleiro que matou o meu marido’"},"content":{"rendered":"
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Ilustra\u00e7\u00e3o: Amanda Miranda para o Intercept Brasil<\/p><\/div>\n

Em novembro,<\/u> completaram-se 30 anos do dia em que a lavradora Maria Rodrigues dos Santos Gomes matou em leg\u00edtima defesa o policial militar e pistoleiro Marino Silva. Na \u00e9poca, a zona rural de S\u00e3o Mateus, no Maranh\u00e3o, passava por uma s\u00e9rie de conflitos por terra. O\u00a0jagun\u00e7o havia ido \u00e0 ro\u00e7a onde trabalhava Alonso Silvestre Gomes, marido de Maria, com um objetivo: assassin\u00e1-lo. A lavradora interveio para defender a fam\u00edlia e acertou com uma estaca e um fac\u00e3o o assassino que havia acabado de atirar em seu marido. Maria n\u00e3o p\u00f4de evitar a morte de Alonso, mas garantiu a si e aos dois filhos pequenos que estavam presentes o direito de permanecerem vivos.<\/p>\n

Apesar de o inqu\u00e9rito policial ter sido conclusivo a respeito de\u00a0ela ter agido em leg\u00edtima defesa, e por isso n\u00e3o haveria crime a ser julgado \u2013 conforme o artigo 23, inciso dois do C\u00f3digo Penal Brasileiro \u2013, a den\u00fancia oferecida contra ela pelo Minist\u00e9rio P\u00fablico Estadual foi de homic\u00eddio simples. A previs\u00e3o de pena era de seis a\u00a020 anos de reclus\u00e3o. Maria ficou vi\u00fava aos 30 anos, com cinco filhos pequenos e prestes a ser julgada por um crime que n\u00e3o cometeu.<\/p>\n

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Uma intensa campanha por sua absolvi\u00e7\u00e3o foi promovida ao longo de cinco anos por setores da igreja cat\u00f3lica que acompanham as lutas por terra e territ\u00f3rio no campo. O arcebispo de S\u00e3o Lu\u00eds \u00e0 \u00e9poca, dom Paulo Andrade Ponte, e outros onze bispos do Maranh\u00e3o assinaram e divulgaram uma carta semanas antes do julgamento, defendendo a inoc\u00eancia de Maria e denunciando os \u201cdois pesos e duas medidas\u201d da justi\u00e7a.<\/p>\n

A Comiss\u00e3o Pastoral da Terra no Maranh\u00e3o, a CPT, a Anima\u00e7\u00e3o Crist\u00e3 no Meio Rural, a ACR, e o Movimento de Vi\u00favas V\u00edtimas de Viol\u00eancia no Campo, o MVC, empreenderam uma articula\u00e7\u00e3o nacional para reafirmar ao Judici\u00e1rio e \u00e0 opini\u00e3o p\u00fablica a necessidade de absolvi\u00e7\u00e3o de Maria e a legitimidade da sua luta, que era, e \u00e9, a de milh\u00f5es de povos origin\u00e1rios, tradicionais e quilombolas, que t\u00eam na terra sua hist\u00f3ria, alimento e pertencimento.<\/p>\n

No dia do julgamento de Maria Rodrigues, em 27 de setembro de 1995, a cidade de S\u00e3o Mateus parou. Nenhuma reparti\u00e7\u00e3o p\u00fablica funcionou. O audit\u00f3rio do Col\u00e9gio S\u00e3o Francisco, improvisado para receber a sess\u00e3o, ficou lotado. Cerca de 1.200 pessoas assistiram \u00e0 audi\u00eancia.<\/p>\n

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Relatos da imprensa publicados na \u00e9poca falam de faixas em apoio \u00e0 Maria espalhadas pela cidade, caravanas de diversos munic\u00edpios levando sindicalistas, militantes, jornalistas, pol\u00edticos, membros da igreja cat\u00f3lica e estudantes universit\u00e1rios. Foram distribu\u00eddos panfletos, adesivos, folders e jornais. Cartas e manifestos em apoio \u00e0 lavradora chegavam de diversos estados do Brasil e at\u00e9 de outros pa\u00edses. Um jejum e ora\u00e7\u00e3o coletivos foram iniciados na manh\u00e3 do julgamento por um grupo de mais de vinte pessoas.<\/p>\n

Ap\u00f3s cerca de doze horas de julgamento, no come\u00e7o da madrugada do dia 28 de setembro de 1995, a promotora do caso, Ana Luiza Ferro, pediu a absolvi\u00e7\u00e3o de Maria Rodrigues por falta de provas cabais. O Tribunal do J\u00fari, composto por cinco mulheres e dois homens, foi un\u00e2nime em votar tamb\u00e9m pela absolvi\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Maria Rodrigues dos Santos Gomes foi convidada pela ju\u00edza a se levantar para ouvir a senten\u00e7a. Depois de pronunciada sua absolvi\u00e7\u00e3o, ela foi aplaudida de p\u00e9 pelas pessoas que acompanhavam seu julgamento. Houve festa na cidade at\u00e9 o amanhecer daquele dia.<\/p>\n

Estive em S\u00e3o Mateus em novembro de 2020 para ouvir Maria e entender como as mem\u00f3rias de tr\u00eas d\u00e9cadas cruzam seu presente. Na \u00e9poca do nosso encontro, ela concorria a uma cadeira da C\u00e2mara\u00a0Municipal de S\u00e3o Mateus pelo PT. N\u00e3o foi eleita. Em nossa conversa, realizada um dia antes do primeiro turno da disputa eleitoral, ela disse que, se n\u00e3o ganhasse, iria considerar assumir novamente o cargo de delegada sindical pelo assentamento onde vive. O marido era delegado sindical da regi\u00e3o quando foi assassinado em 19 de novembro de 1990. Os mandantes do assassinato nunca foram investigados.<\/p>\n

Veja, a seguir, a hist\u00f3ria de Maria. O relato foi editado para melhor compreens\u00e3o.<\/p>\n

\n\"Maria-Rodrigues-dos-Santos-Gomes\"\n

Trinta anos ap\u00f3s ter o marido assassinado por sua atua\u00e7\u00e3o pol\u00edtica, Maria Rodrigues se candidatou ao cargo da vereadora da cidade de S\u00e3o Mateus.<\/p>\n

\nFoto: Arquivo pessoal\/Maria Rodrigues dos Santos Gomes<\/p><\/div>\n

\u201cCompletei 60 anos<\/u> no dia 7 de novembro de 2020. Sou natural de Esperantina, no Piau\u00ed. Fui morar com meus pais em S\u00e3o Mateus do Maranh\u00e3o no fim da d\u00e9cada de 1960. Eu tinha nove anos. Meus pais eram lavradores e deixaram para tr\u00e1s, no Piau\u00ed, a seca. N\u00e3o tenho boas lembran\u00e7as de l\u00e1.<\/p>\n

Conheci Alonso com uns 15 anos. Ele tamb\u00e9m era trabalhador rural e estava com uns 45 anos quando a gente se casou. N\u00e3o lembro ao certo da idade dele na \u00e9poca. Fui morar com ele na comunidade Veloso, onde ele j\u00e1 vivia. Passamos\u00a015 anos juntos, tivemos oito filhos. Cinco estavam vivos quando Alonso foi assassinado: um de quinze, um de dez, de sete, seis e dois anos de idade.<\/p>\n

Alonso tinha sido eleito delegado sindical da regi\u00e3o em 1987 e apoiava a luta de lavradores por terra e territ\u00f3rio e contra a apropria\u00e7\u00e3o privada da terra por latifundi\u00e1rios. Marino Santos era policial militar e pistoleiro de Bacabal, cidade a cerca de 57 quil\u00f4metros de S\u00e3o Mateus. \u00c0s v\u00e9speras do assassinato de Alonso, Marino, se passando por vendedor de redes ambulante, circulava em uma moto pelos povoados de Veloso e Alto Grande perguntando por lideran\u00e7as da regi\u00e3o. Entre essas lideran\u00e7as estava Alonso.<\/p>\n

Na primeira vez em que Marino encostou na minha casa para supostamente oferecer suas redes, eu disse que n\u00e3o queria comprar. Era muito comum a visita de caixeiros viajantes oferecendo produtos na regi\u00e3o, mas o Alonso nunca comprava. Mesmo assim, eu sempre oferecia \u00e1gua ou caf\u00e9 aos vendedores. Mas para o Marino n\u00e3o senti vontade de oferecer nada. N\u00e3o me dei com ele desde o primeiro momento. Tinha alguma coisa estranha.<\/p>\n

Em uma segunda visita, ele perguntou para uma das minhas filhas mais velhas onde estava \u201co sogro\u201d dele. Ela respondeu que o pai estava na ro\u00e7a. J\u00e1 era mais de meio-dia quando o pistoleiro foi embora dizendo que iria \u00e0 sede de S\u00e3o Mateus. Naquela altura, eu j\u00e1 tinha mandado meus filhos de dez e seis anos levarem o almo\u00e7o do pai.<\/p>\n

Eu observei o trajeto dele na moto e notei que n\u00e3o pegou o caminho para a sede da cidade, mas a dire\u00e7\u00e3o da ro\u00e7a do Alonso. Senti uma coisa estranha e sa\u00ed de casa imediatamente, tomei um atalho e corri para tentar chegar antes de Marino onde estava meu marido. Cheguei quase ao mesmo tempo que ele. Vi ele conversando com Alonso, que tinha empilhado algumas estacas de madeira no local e estava dizendo para o pistoleiro que usaria a madeira para cercar a ro\u00e7a. Era \u00e9poca de iniciar o plantio.<\/p>\n

S\u00f3 depois que ele caiu \u00e9 que percebi que meu marido estava morto. Meus dois filhos pequenos viram tudo.<\/blockquote>\n

No meio da conversa, o pistoleiro sacou o rev\u00f3lver calibre 38 e atirou em Alonso. Devido \u00e0 pouca dist\u00e2ncia, eles se agarraram. O Alonso caiu por cima da arma, e foi quando eu apanhei uma das estacas da pilha e acertei o pistoleiro na cabe\u00e7a. Ele ainda conseguiu me chutar muito, mas continuei reagindo. Eu alcancei o fac\u00e3o do Alonso e acertei o pistoleiro no peito. S\u00f3 depois que ele caiu \u00e9 que percebi que meu marido estava morto. Meus dois filhos pequenos viram tudo.<\/p>\n

Eu sentei na beira do caminho que dava na ro\u00e7a e gritei por socorro. Mesmo sozinha, eu juntei a arma do pistoleiro, o fac\u00e3o do Alonso, coloquei tudo na bacia vazia onde estava o almo\u00e7o que meu marido tinha acabado de comer e corri de volta para casa em busca de ajuda.<\/p>\n

Aquele foi meu \u00faltimo dia de morada na comunidade Veloso. Fui para a sede de S\u00e3o Mateus e, tr\u00eas dias depois, me apresentei \u00e0 pol\u00edcia. N\u00e3o participei da sentinela do Alonso, nem do enterro no cemit\u00e9rio do povoado. S\u00f3 muitos anos depois \u00e9 que eu pude ver a prepara\u00e7\u00e3o do corpo dele para a sentinela e enterro em registros de v\u00eddeo feitos por pessoas da igreja cat\u00f3lica que passaram a me acompanhar e ajudar depois do que aconteceu.<\/p>\n

O Alonso morreu inocente. Ele era delegado sindical da regi\u00e3o, e o assassinato dele foi uma vingan\u00e7a pela morte de Bernardo Pereira, uma das pessoas que se dizia propriet\u00e1ria de terras na comunidade Alto Grande, que ficava perto de Veloso. Em junho de 1990, Bernardo foi encontrado morto numa estrada que dava acesso a Alto Grande, e culparam os lavradores.<\/p>\n

Alonso n\u00e3o tinha nada a ver com isso. No papel que a pol\u00edcia encontrou no bolso do pistoleiro, tinha os nomes de Alonso e de outros quatro lavradores que seriam mortos, e os nomes de Pl\u00e1cida Oliveira Costa e Dalila Pereira Alves de Oliveira. Pl\u00e1cida era esposa de Bernardo; Dalila \u00e9 madrasta de Pl\u00e1cida. Junto com os nomes delas, tinha um telefone, que era de Dalila. A pol\u00edcia nunca investigou os mandantes do assassinato do Alonso.<\/p>\n

Eu n\u00e3o aceitava o trabalho dele, porque ouvia falar que as pessoas morriam na luta e eu n\u00e3o queria que meu marido morresse.<\/blockquote>\n

Eu fiquei sem cabe\u00e7a at\u00e9 para criar meus filhos, que eram todos pequenos. Eu botava panela no fogo e l\u00e1 ela ficava. Eu fiquei tipo dopada, sem planos, sem nada, fiquei no fundo do po\u00e7o. Gra\u00e7as a Deus, os padres nesse tempo eram muito comprometidos com o pessoal, n\u00e3o largavam o lavrador. Eram de segurar a m\u00e3o mesmo. Eles me compraram uma casa em S\u00e3o Mateus.<\/p>\n

Depois, influenciada pelos meus irm\u00e3os, que tinham receio que eu continuasse ali por causa da fam\u00edlia do pistoleiro, vendi a casa e fui morar em S\u00e3o Lu\u00eds com meus filhos. Eu criei eles l\u00e1. Muita gente me ajudou, conseguiram escola para eles. Eu trabalhava nas cozinhas alheias para ajudar meus filhos.<\/p>\n

Quando eles j\u00e1 estavam crescidos, voltei para o interior de S\u00e3o Mateus. Estou morando num assentamento h\u00e1 12 anos. Eu gosto de mato, de natureza. Nunca quis me esconder, porque n\u00e3o cometi crime nenhum. Tamb\u00e9m n\u00e3o abandonei nenhum dos meus filhos, criei todos, apesar das dificuldades. Eles foram a heran\u00e7a do Alonso para mim.<\/p>\n

Eu era evang\u00e9lica, n\u00e3o gostava de padre. Meu marido tamb\u00e9m era evang\u00e9lico, mas ele sempre participava das coisas dos padres, era orientado por eles e, quando ele morreu, eu fui ver o significado do trabalho dele como delegado sindical. \u00c9 uma coisa que \u00e0s vezes voc\u00ea n\u00e3o d\u00e1 valor, porque n\u00e3o conhece. Eu era aquela menina brava, quebradeira de coco l\u00e1 do mato, sabia cuidar dos meus filhos e do meu marido.<\/p>\n

Eu n\u00e3o aceitava o trabalho dele, porque ouvia falar que as pessoas morriam na luta, e eu n\u00e3o queria que meu marido morresse, como cansei de dizer para ele. Mas eu acredito que meu marido morreu satisfeito, porque ele queria lutar para defender a terra em que a gente morava, para defender os companheiros. Depois que ele morreu, eu fui dar valor. Hoje, eu sou uma mulher que tem uma li\u00e7\u00e3o de vida, porque o sofrimento n\u00e3o serve s\u00f3 para voc\u00ea sofrer, mas serve para voc\u00ea aprender. Aquela Maria que ficou, do tempo que meu marido morreu, ela morreu tamb\u00e9m.\u201d<\/p>\n

Apura\u00e7\u00e3o feita com apoio da CPT Maranh\u00e3o e do Acervo da ACR – Anima\u00e7\u00e3o de Crist\u00e3os no Meio Rural.<\/i><\/p>\n

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Vi\u00fava aos 30 anos e com cinco filhos pequenos, a lavradora Maria Rodrigues dos Santos Gomes relembra o dia que mudou sua vida.<\/p>\n

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