{"id":467741,"date":"2022-01-13T06:02:48","date_gmt":"2022-01-13T06:02:48","guid":{"rendered":"https:\/\/theintercept.com\/?p=383334"},"modified":"2022-01-13T06:02:48","modified_gmt":"2022-01-13T06:02:48","slug":"o-problema-nao-e-so-o-preco-altissimo-voce-tambem-esta-comprando-carne-podre","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/radiofree.asia\/2022\/01\/13\/o-problema-nao-e-so-o-preco-altissimo-voce-tambem-esta-comprando-carne-podre\/","title":{"rendered":"O problema n\u00e3o \u00e9 s\u00f3 o pre\u00e7o alt\u00edssimo: voc\u00ea tamb\u00e9m est\u00e1 comprando carne podre"},"content":{"rendered":"

H\u00e1 algo de podre<\/u> no reino do agroneg\u00f3cio. A essa altura, j\u00e1 est\u00e1 \u00f3bvio que a transforma\u00e7\u00e3o do Brasil em uma grande fazenda exportadora de commodities<\/i> vem afundando o pa\u00eds em fome, mis\u00e9ria e degrada\u00e7\u00e3o ambiental. Mas h\u00e1 um mau cheiro que tem se instalado de forma concreta e sorrateira na mesa dos brasileiros. E ele vem da carne.<\/p>\n

Um levantamento realizado pelo Reclame Aqui a pedido de O Joio e O Trigo<\/b> e do Intercept<\/b> revelou que o n\u00famero de queixas sobre a compra de carnes estragadas e de m\u00e1 qualidade registradas em 2020 disparou em rela\u00e7\u00e3o ao ano anterior, tend\u00eancia que se repetiu em 2021.<\/p>\n

Nos \u00faltimos dois anos, a combina\u00e7\u00e3o do aumento das exporta\u00e7\u00f5es e de embargos \u00e0 carne brasileira, da disparada do pre\u00e7o em um ritmo bem acima que o da infla\u00e7\u00e3o geral, do agravamento da crise econ\u00f4mica e da pandemia de covid-19 criou uma tempestade perfeita. Maior exportador de carne bovina do mundo, o Brasil dedica o melhor tipo de carne de sua produ\u00e7\u00e3o ao mercado externo. J\u00e1 o consumidor brasileiro vem se deparando, nesse per\u00edodo, com a comercializa\u00e7\u00e3o de alimentos impr\u00f3prios para o consumo e o surgimento de a\u00e7ougues clandestinos.<\/p>\n

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O comerciante Luiz Cesar Lewis, de 41 anos, percebeu isso da pior forma: no prato. \u00c0 frente de uma fam\u00edlia \u201ctotalmente carn\u00edvora\u201d, ele calcula ter comprado carne podre sem perceber pelo menos seis vezes desde o ano passado. Os alimentos foram comprados em grandes redes e mercados de m\u00e9dio porte da zona oeste do Rio de Janeiro.<\/p>\n

\u201cFiz um churrasco uma vez, a gente come\u00e7ou a assar a carne e, quando vai servir o primeiro peda\u00e7o para experimentar, vem o gosto de podre. No ano passado tamb\u00e9m me estressei muito. J\u00e1 estava com a carne toda assada, era confraterniza\u00e7\u00e3o com meus funcion\u00e1rios e, de novo, estava estragada\u201d, lamentou o comerciante.<\/p>\n

Lewis chama a aten\u00e7\u00e3o para outro problema: quando a carne \u00e9 comprada em boas condi\u00e7\u00f5es, mas se deteriora rapidamente, mesmo com refrigera\u00e7\u00e3o adequada e dentro do prazo de validade. Aconteceu com quatro quilos de contra fil\u00e9 e uma pe\u00e7a de 1,5 kg de ac\u00e9m. \u201cQuando minha esposa fez e abriu a panela, o cheiro era insuport\u00e1vel\u201d, lembrou.<\/p>\n

Nem mesmo os anos de experi\u00eancia na cozinha livraram a dona de casa e microempres\u00e1ria Luciana Candido, de 57 anos, de comprar carne estragada sem perceber. Foram quatro vezes nos \u00faltimos meses. \u201cCostumo dizer que n\u00e3o compro s\u00f3 com dinheiro, compro com olhos. A carne estava muito bonita e era de qualidade. Quando cheguei em casa, estava estragada. H\u00e1 15 dias aconteceu a mesma coisa, com peito de frango que eu comprei no supermercado\u201d, relembrou.<\/p>\n

Relatos semelhantes t\u00eam sido cada vez mais frequentes e pipocam pelas redes sociais. Carnes aparentemente em boas condi\u00e7\u00f5es e dentro do prazo de validade, em geral cortes embalados a v\u00e1cuo. Em menor escala, tamb\u00e9m com pacotes congelados de su\u00ednos e frangos.<\/p>\n

\n\"Vista\n

Linha de produ\u00e7\u00e3o da JBS, frigor\u00edfico mais multado do Brasil, no Paran\u00e1.<\/p>\n

\nFoto: Pedro Ladeira\/Folhapress<\/p><\/div>\n

Queixas dispararam em dois anos<\/h3>\n

A responsabilidade pelo controle sanit\u00e1rio de alimentos de origem animal no Brasil \u00e9 compartilhada entre o Minist\u00e9rio da Agricultura, Pecu\u00e1ria e Abastecimento, conhecido como MAPA, e o Minist\u00e9rio da Sa\u00fade. Enquanto a inspe\u00e7\u00e3o e a fiscaliza\u00e7\u00e3o nos frigor\u00edficos \u00e9 concentrada no Departamento de Produtos de Origem Animal, vinculado \u00e0 Secretaria de Defesa Agropecu\u00e1ria do MAPA, o controle sobre a comercializa\u00e7\u00e3o desses alimentos \u00e9 capilarizado nas vigil\u00e2ncias municipais, por sua vez vinculadas ao Sistema Nacional de Vigil\u00e2ncia Sanit\u00e1ria, da Anvisa.<\/p>\n

Por atuar na maioria das vezes a partir de den\u00fancias e sem uma estrutura que d\u00ea conta de fiscalizar os pontos de venda, n\u00e3o h\u00e1 dados unificados e abrangentes das vigil\u00e2ncias sanit\u00e1rias dos munic\u00edpios sobre problemas na comercializa\u00e7\u00e3o desses alimentos. Mas a pedido da nossa reportagem, o Instituto Reclame Aqui fez um levantamento especial que aponta uma disparada no n\u00famero de reclama\u00e7\u00f5es de consumidores de todo o Brasil que compraram carne estragada nos anos de 2020 e 2021.<\/p>\n

O portal tem 30 milh\u00f5es de consumidores cadastrados e recebe o mesmo n\u00famero de visitas por m\u00eas. Al\u00e9m de ser uma ferramenta para resolu\u00e7\u00e3o de conflitos e de avalia\u00e7\u00e3o da reputa\u00e7\u00e3o de empresas e servi\u00e7os, o site det\u00e9m um grande volume de dados e informa\u00e7\u00f5es.<\/p>\n

Segundo o levantamento, em 2020 o n\u00famero de queixas registradas em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 carne estragada cresceu 52%, enquanto as reclama\u00e7\u00f5es sobre a qualidade desses alimentos aumentou 58% na compara\u00e7\u00e3o com o ano anterior. Resultado semelhante foi observado nos primeiros dez meses de 2021, com altas de 48% e 56%, respectivamente, nos mesmos indicadores.<\/p>\n

\n\"\"\n<\/div>\n

Na an\u00e1lise, foram contempladas 483 empresas, entre a\u00e7ougues, frigor\u00edficos, supermercados e casas de carne de todo o Brasil. \u201cO recorte \u00e9 nacional e envolve reclama\u00e7\u00f5es sobre a qualidade da carne (excesso de gordura, carne com muitos nervos, carne dura, entre outras queixas) e sobre carne estragada (apar\u00eancia, cheiro forte, peda\u00e7os de pl\u00e1stico, corpos estranhos) nos textos das reclama\u00e7\u00f5es\u201d, nos explicou em nota o instituto.<\/p>\n

Desde que reabriu seu restaurante em Itaja\u00ed, munic\u00edpio de Santa Catarina, ap\u00f3s as restri\u00e7\u00f5es do per\u00edodo de isolamento social, a chef de cozinha K\u00e1ssia Belle, de 34 anos, passou a ter medo da carne. \u201cNossa cozinheira est\u00e1 comigo h\u00e1 dez anos. Se a gente teve dois ou tr\u00eas problemas com carnes nesse tempo foi muito. Entre junho e dezembro, aconteceu quatro vezes\u201d, contou.<\/p>\n

Nas duas primeiras, as carnes foram compradas no mercado, j\u00e1 que, naquele momento, o restaurante ainda estava com movimento abaixo do normal. Depois, os problemas foram com a distribuidora: nas caixas fechadas havia pe\u00e7as impr\u00f3prias para consumo. \u201cMesmo na geladeira, em 24 horas a carne ficou totalmente verde\u201d. H\u00e1 cerca de tr\u00eas meses, de novo o susto. \u201cPegamos uma caixa inteira estragada\u201d, lembrou. \u201cQuando a cozinheira abriu, veio o cheiro\u201d.<\/p>\n

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Pre\u00e7o da carne subiu 148%<\/h3>\n

Com a alta no pre\u00e7o, faz sentido concluir que a carne passe mais tempo nos freezers e congeladores de supermercados e a\u00e7ougues \u2013 sem falar nos casos de consumidores que desistem da compra e largam as pe\u00e7as fora da refrigera\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Nos \u00faltimos 10 anos, mesmo per\u00edodo em que o Brasil acumulou recordes de exporta\u00e7\u00e3o<\/a> de prote\u00edna animal, o pre\u00e7o das carnes em geral subiu 148%, segundo c\u00e1lculos do professor Valter Palmieri Jr, da Strong Business School\/Funda\u00e7\u00e3o Get\u00falio Vargas. Um percentual muito acima da infla\u00e7\u00e3o geral e, inclusive, da infla\u00e7\u00e3o de alimentos e bebidas, que registrou alta de 107,8% no per\u00edodo, tamb\u00e9m de acordo com o professor.<\/p>\n

\u201cQuando a exporta\u00e7\u00e3o sobe, os pre\u00e7os dos alimentos acompanham. Mas quando elas caem por dois ou tr\u00eas meses, n\u00e3o h\u00e1 uma diminui\u00e7\u00e3o no pre\u00e7o. Essa correla\u00e7\u00e3o acontece apenas quando sobe, n\u00e3o quando cai\u201d, explicou Palmieri Jr.<\/p>\n

\n\"Varia\u00e7\u00e3o\n

Varia\u00e7\u00e3o acumulada dos pre\u00e7os de carnes (em geral), alimentos e bebidas e o IPCA entre janeiro de 2011 e outubro de 2021.<\/p>\n<\/div>\n

Um dos saltos no pre\u00e7o da carne aconteceu no final de 2019, quando houve um surto de peste su\u00edna que obrigou a China a abater uma grande quantidade do seu rebanho, aumentando a demanda do pa\u00eds por prote\u00edna animal. Com a desvaloriza\u00e7\u00e3o da moeda brasileira em rela\u00e7\u00e3o ao d\u00f3lar, tornou-se mais vantajoso exportar do que atender ao mercado interno.<\/p>\n

Em setembro deste ano, um embargo \u00e0 carne brasileira<\/a> marcou a maior crise comercial da hist\u00f3ria de quase 50 anos de rela\u00e7\u00f5es comerciais entre Brasil e China. A raz\u00e3o oficial foram dois casos suspeitos da doen\u00e7a da vaca louca descobertos em Minas Gerais e no Mato Grosso. Nos bastidores, analistas especulam (1<\/a>, 2<\/a>) que tenha sido uma tentativa da China de for\u00e7ar uma queda nos pre\u00e7os da carne bovina e aumentar o consumo interno de su\u00ednos.<\/p>\n

Em dois meses, o pre\u00e7o do boi gordo<\/a> caiu, mas tornou a subir no fim de novembro. Produtores postergaram o abate dos animais \u00e0 espera do pre\u00e7o voltar ao patamar \u201cnormal\u201d. O com\u00e9rcio de carne bovina entre Brasil e China foi retomado oficialmente em 15 de dezembro. Por aqui, houve quem tivesse esperan\u00e7a de que o embargo provocasse uma redu\u00e7\u00e3o nos pre\u00e7os pagos pelo consumidor brasileiro, o que n\u00e3o aconteceu.<\/p>\n

\u201cO animal chegou a acumular queda de 15,50% em um intervalo de 30 dias\u201d, explicam os analistas da Agrifatto<\/a>, empresa que faz an\u00e1lises sobre investimento em ativos agropecu\u00e1rios. \u201cCerca de um m\u00eas depois, o mesmo boi gordo no mercado f\u00edsico paulista chegou a subir 26,64%\u201d.<\/p>\n

Cortes menos nobres tamb\u00e9m encareceram<\/h3>\n

Nos 11 primeiros meses de 2021, as exporta\u00e7\u00f5es brasileiras de carne bovina do tipo angus (considerado premium)<\/i> subiram 26,8%. \u201cO Brasil \u00e9 conhecido pela exporta\u00e7\u00e3o em volume, mas est\u00e1 se consolidando em um mercado extremamente competitivo, o da carne premium<\/i>\u201d, comemora, em nota<\/a> de 13 de dezembro, a Associa\u00e7\u00e3o Brasileira de Angus.<\/p>\n

Nesse mesmo per\u00edodo, os cortes considerados de segunda ficaram mais caros. M\u00fasculo e ac\u00e9m foram os que mais subiram. \u201cEm 10 anos, o pre\u00e7o do m\u00fasculo triplicou. S\u00e3o cortes que tiveram uma procura maior em rela\u00e7\u00e3o \u00e0queles tidos como mais nobres, devido \u00e0 situa\u00e7\u00e3o econ\u00f4mica do pa\u00eds. \u00c9 o que explica esse aumento de pre\u00e7o t\u00e3o expressivo\u201d, explicou o professor Palmieri Jr.<\/p>\n

\n\"Varia\u00e7\u00e3o\n

Varia\u00e7\u00e3o acumulada por tipo de carnes e o IPCA entre janeiro de 2011 e outubro de 2021.<\/p>\n

\nGr\u00e1fico: J\u00falia Coelho\/The Intercept Brasil<\/p><\/div>\n

\u201cHoje em dia, para comprar uma carne macia, tem que ir nessas maturadas<\/a>, porque, se n\u00e3o for, dificilmente a carne presta. A alcatra, por exemplo, h\u00e1 uns anos era uma carne maravilhosa. Hoje, n\u00e3o tem um bife que voc\u00ea frite que se n\u00e3o deixar bem mal passado n\u00e3o fique duro e sem gosto\u201d, observou Luiz Cesar Lewis.<\/p>\n

\u201cAt\u00e9 mar\u00e7o deste ano, vinham uns cortes muito mal cortados\u201d, contou a chef de cozinha K\u00e1ssia Belle. \u201cA carne vinha retalhada, a costela parecia desossada. S\u00e3o coisas que chamaram nossa aten\u00e7\u00e3o, porque a gente nunca teve esse problema no restaurante. Agora tem que passar por um crivo maior, aumentar o controle\u201d.<\/p>\n

Ign\u00e1cio<\/a>, a\u00e7ougueiro da rede de supermercados Unidos, na cidade do Rio, contou que \u00e9 relativamente comum que, em uma caixa com pe\u00e7as de carnes, algumas n\u00e3o sejam do corte indicado na embalagem. \u201cVem uma caixa com 25 carnes embaladas. Cinco aparecem como patinho, mas na verdade s\u00e3o ac\u00e9m\u201d, relatou. \u201cA maioria dos clientes n\u00e3o percebe, mas j\u00e1 tivemos troca por parte de quem conhece bem carne\u201d. Nesses casos, o preju\u00edzo fica com o supermercado.<\/p>\n

Operador do setor de carnes, Eus\u00e9bio Pinto trabalha h\u00e1 10 anos na rede de hipermercados Mundial. Ele conta que a empresa adota crit\u00e9rios mais rigorosos no recebimento de carnes das distribuidoras. Algumas pe\u00e7as embaladas s\u00e3o abertas no a\u00e7ougue do mercado para conferir a qualidade de lotes grandes com 50, 60 pe\u00e7as. \u201cMas j\u00e1 tivemos que devolver por conta de temperatura inadequada, assim como casos de carr\u00e9 [bisteca] congelado impr\u00f3prio para consumo, mesmo dentro do prazo de validade\u201d.<\/p>\n

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Fiscaliza\u00e7\u00e3o rala<\/h3>\n

Devido aos riscos de impacto direto na sa\u00fade do consumidor, os produtos de origem animal s\u00e3o fiscalizados e tamb\u00e9m inspecionados. A inspe\u00e7\u00e3o permanente ocorre nos estabelecimentos em que h\u00e1 abate de animais, devido ao constante risco de doen\u00e7as que acometem tanto animais, como o ser humano, al\u00e9m daquelas transmitidas por alimentos. Essa inspe\u00e7\u00e3o ocorre desde a recep\u00e7\u00e3o e o exame dos animais at\u00e9 a conclus\u00e3o do abate. As a\u00e7\u00f5es de desossa, embalagem e expedi\u00e7\u00e3o s\u00e3o fiscalizadas pelo Servi\u00e7o de Inspe\u00e7\u00e3o Federal, o SIF, do MAPA.<\/p>\n

\u201cO servi\u00e7o de inspe\u00e7\u00e3o e fiscaliza\u00e7\u00e3o do Brasil \u00e9 reconhecido como um dos mais robustos do mundo\u201d, avalia o m\u00e9dico veterin\u00e1rio Andr\u00e9 Medeiros, mestre e doutor pelo programa de p\u00f3s-gradua\u00e7\u00e3o Higiene Alimentar e Processamento Tecnol\u00f3gico em Produtos de Origem Animal, da Medicina Veterin\u00e1ria da Universidade Federal Fluminense, a UFF, e especialista em Seguran\u00e7a Alimentar e Qualidade Nutricional pelo Instituto Federal Educa\u00e7\u00e3o, Ci\u00eancia e Tecnologia do Rio de Janeiro, o IFRJ. \u201cNa ind\u00fastria, a inspe\u00e7\u00e3o \u00e9 feita exclusivamente por um m\u00e9dico veterin\u00e1rio, que \u00e9 quem estuda doen\u00e7as no animal e como isso pode chegar no ser humano\u201d, explica Andr\u00e9.<\/p>\n

Os auditores fiscais federais agropecu\u00e1rios, conhecidos como affas, s\u00e3o servidores p\u00fablicos de carreira do MAPA. Segundo o Sindicato Nacional dos Fiscais Federais Agropecu\u00e1rios, o Brasil tem pouco mais de 2,5 mil auditores fiscais federais na ativa. Houve uma redu\u00e7\u00e3o de 37,3% no quadro desses servidores em 20 anos. \u201cIsso ocorreu, em grande parte, devido \u00e0 aposentadoria de affas, sem a reposi\u00e7\u00e3o do quadro. Em fun\u00e7\u00e3o do crescimento das demandas do agroneg\u00f3cio, h\u00e1 uma car\u00eancia de 1.620 affas\u201d, calcula um estudo da FGV<\/a> encomendado pelo sindicato.<\/p>\n

\u201cNesse per\u00edodo, a produ\u00e7\u00e3o agropecu\u00e1ria e as exporta\u00e7\u00f5es do agroneg\u00f3cio cresceram, respectivamente, 162,9% e 389,4%\u201d. Entre janeiro e novembro de 2020, a demanda por certificados sanit\u00e1rios internacionais para fins de exporta\u00e7\u00e3o de produtos de origem animal do Brasil teve um crescimento de 17,3% em rela\u00e7\u00e3o ao mesmo per\u00edodo de 2019. Foram abertos 24 novos mercados para o Brasil, inclusive dos Estados Unidos, onde as vendas de carne bovina brasileira in natura<\/i> estavam suspensas desde julho de 2017. Os dados constam dessa mesma publica\u00e7\u00e3o, lan\u00e7ada em julho deste ano.<\/p>\n

Uma contradi\u00e7\u00e3o dentro da pr\u00f3pria l\u00f3gica pol\u00edtico-econ\u00f4mica vigente no Brasil: enquanto todo o sistema de pol\u00edticas p\u00fablicas e a\u00e7\u00f5es governamentais voltou-se para o agroneg\u00f3cio e as exporta\u00e7\u00f5es, a limita\u00e7\u00e3o de gastos p\u00fablicos por 20 anos, aprovada ainda no governo de Michel Temer, impede a reposi\u00e7\u00e3o de servidores p\u00fablicos. Inclusive aqueles que d\u00e3o suporte para as atividades do pr\u00f3prio agroneg\u00f3cio, como \u00e9 o caso dos affas.<\/p>\n

Um relat\u00f3rio anual divulgado pelo MAPA admite que o ano de 2020 trouxe limita\u00e7\u00f5es para a fiscaliza\u00e7\u00e3o e inspe\u00e7\u00e3o dos produtos de origem animal. Parte das a\u00e7\u00f5es foram feitas de forma remota, por meio da an\u00e1lise documental. \u201cAs restri\u00e7\u00f5es de viagens\/deslocamentos ocasionados pela pandemia do COVID-19 prejudicou [sic<\/i>] o n\u00famero total de auditorias presenciais realizadas tanto nos estabelecimentos sob regime de inspe\u00e7\u00e3o peri\u00f3dica como nos estabelecimentos sob regime de inspe\u00e7\u00e3o permanente\u201d, informa o anu\u00e1rio de gest\u00e3o de 2020 do Departamento de Inspe\u00e7\u00e3o de Produtos de Origem Animal da Secretaria de Defesa Agropecu\u00e1ria<\/a>.<\/p>\n

Outro documento divulgado pelo MAPA<\/a> em julho deste ano menciona ainda \u201cinterrup\u00e7\u00f5es de coletas, dificuldades log\u00edsticas para envio de amostras aos laborat\u00f3rios em fun\u00e7\u00e3o de suspens\u00e3o de rotas de transporte rodovi\u00e1rios ou a\u00e9reos, paralisa\u00e7\u00e3o tempor\u00e1rias de laborat\u00f3rios e outras\u201d.<\/p>\n

\u00c9 poss\u00edvel observar que o n\u00famero de multas pagas vem diminuindo ao longo dos \u00faltimos anos. Entre 2016 e 2017, quando a divulga\u00e7\u00e3o dessas informa\u00e7\u00f5es passou a ser obrigat\u00f3ria, foram 4.470 san\u00e7\u00f5es pagas pelos infratores. Esse n\u00famero caiu nos anos seguintes: foram 4.310 entre os anos de 2018 e 2019 e 3.629 no per\u00edodo de 2020 e 2021.<\/p>\n

Esses relat\u00f3rios mostram<\/a> n\u00fameros totais de inspe\u00e7\u00e3o e fiscaliza\u00e7\u00e3o de produtos de origem animal, a grande maioria, mas tamb\u00e9m produtos veterin\u00e1rios, fertilizantes, bebidas e a classifica\u00e7\u00e3o de alimentos vegetais. Como as multas t\u00eam um tempo de tramita\u00e7\u00e3o, boa parte dos registros dizem respeito a infra\u00e7\u00f5es cometidas em anos anteriores e que j\u00e1 foram pagas pelas empresas.<\/p>\n

\n\"Cattle\n

Ap\u00f3s queda de pre\u00e7o com embargo da China \u00e0 carne brasileira, valor do boi gordo voltou a subir em novembro.<\/p>\n

\nFoto: Jonne Roriz\/Bloomberg via Getty Images<\/p><\/div>\n

JBS \u00e9 empresa com mais infra\u00e7\u00f5es<\/h3>\n

O fato de o Brasil ter um sistema considerado exemplar de fiscaliza\u00e7\u00e3o dos produtos de origem animal tornou poss\u00edvel que o pa\u00eds assumisse a lideran\u00e7a nas exporta\u00e7\u00f5es de carne bovina, aves e su\u00ednos. Mas isso n\u00e3o impede que grandes frigor\u00edficos cometam fraudes e burlem os processos de controle, como mostram os relat\u00f3rios de fiscaliza\u00e7\u00e3o e inspe\u00e7\u00e3o do MAPA.<\/p>\n

Na vers\u00e3o mais recente da publica\u00e7\u00e3o, referente \u00e0s multas pagas nos anos de 2020 e parte de 2021, a JBS aparece em destaque entre as empresas deste segmento que sofreram penalidades<\/a>. Foram 434 infra\u00e7\u00f5es<\/a> neste per\u00edodo, somando os processos referentes \u00e0s unidades da JBS, Seara e JBS Aves. A quantidade de infra\u00e7\u00f5es aplicadas em 2020 e 2021 pode ser maior, j\u00e1 que s\u00e3o divulgados apenas os casos em que a empresa n\u00e3o pode mais recorrer.<\/p>\n

Considerando os quatro maiores grupos do setor de carnes e aves, a JBS, dona das marcas Friboi e Seara, se destaca pelo seu gigantismo, com produ\u00e7\u00e3o e faturamento bem superiores aos concorrentes. Isso tamb\u00e9m explica o n\u00famero significativamente maior de infra\u00e7\u00f5es. Na sequ\u00eancia, aparece a BRF, dona das marcas Sadia e Perdig\u00e3o, com 171 infra\u00e7\u00f5es pagas nos \u00faltimos dois anos. Em seguida, mas em um patamar bastante abaixo, est\u00e3o Minerva, com 36 infra\u00e7\u00f5es, e Marfrig, com 28, esta \u00faltima dona das marcas Montana e Bassi, e maior acionista da BRF.<\/p>\n\n <\/iframe>\n \n

Entre os problemas mais comuns, est\u00e3o a identifica\u00e7\u00e3o de contamina\u00e7\u00e3o gastrointestinal e fecal em animais e carca\u00e7as, a temperatura inadequada e descongelamentos, fraudes em mecanismos sanit\u00e1rios de autocontrole, a presen\u00e7a de abscessos e cartilagens em cortes j\u00e1 embalados, o reprocessamento de produtos deteriorados, a presen\u00e7a da bact\u00e9ria salmonella em frango, a altera\u00e7\u00e3o da data de validade para at\u00e9 um ano \u00e0 frente e o percentual de umidade acima do permitido em aves e lingui\u00e7as.<\/p>\n

Tamb\u00e9m chama aten\u00e7\u00e3o a quantidade de infra\u00e7\u00f5es relacionadas ao bem-estar animal, desrespeitando a legisla\u00e7\u00e3o e sistemas de controles e melhorias criados pelos pr\u00f3prios frigor\u00edficos.<\/p>\n

No \u00faltimo dia 15 de dezembro, a JBS sofreu um rev\u00e9s: cinco redes europeias de supermercados e uma fabricante de alimentos comunicaram<\/a> que n\u00e3o v\u00e3o mais vender carne bovina com origem brasileira ou produtos de carne ligados \u00e0 empresa, por causa de recentes den\u00fancias de destrui\u00e7\u00e3o da Floresta Amaz\u00f4nica. Os boicotes foram anunciados depois de uma investiga\u00e7\u00e3o<\/a> das ONGs Rep\u00f3rter Brasil e Mighty Earth acusar a JBS de adquirir animais criados em \u00e1reas desmatadas, dentro de um esquema conhecido como “lavagem de gado”.<\/p>\n

Carne de cavalo e a\u00e7ougues clandestinos<\/h3>\n

Com a carne mais cara, aumentou tamb\u00e9m o n\u00famero de ocorr\u00eancias envolvendo a\u00e7ougues clandestinos, com venda de carne impr\u00f3pria para consumo e at\u00e9 mesmo comercializa\u00e7\u00e3o de carne de cavalo. Em setembro deste ano, uma a\u00e7\u00e3o fechou um frigor\u00edfico de carne de cavalo<\/a> em Aparecida de Goi\u00e2nia, em Goi\u00e1s. Os animais estavam em situa\u00e7\u00e3o prec\u00e1ria, desnutridos e com sinais de maus-tratos. O propriet\u00e1rio \u00e9 investigado por ser dono de outro estabelecimento semelhante, interditado meses antes<\/a> na mesma cidade e pelo mesmo motivo.<\/p>\n

Em Caxias do Sul, cidade do Rio Grande do Sul, uma opera\u00e7\u00e3o do Minist\u00e9rio P\u00fablico do Rio Grande do Sul descobriu um abatedouro que fornecia hamb\u00fargueres com carne de cavalo<\/a> misturada a carne su\u00edna e de peru para lanchonetes da cidade. Os animais eram comprados de carroceiros e estavam em p\u00e9ssimas condi\u00e7\u00f5es de sa\u00fade. Cerca de 800kg de carne eram comercializados por semana, segundo os promotores. Escutas apontam tamb\u00e9m a utiliza\u00e7\u00e3o de carne estragada, lavada para tirar o odor e misturada no preparo dos hamb\u00fargueres.<\/p>\n

Nos \u00faltimos meses, houve apreens\u00f5es de carne impr\u00f3pria para consumo em Quara\u00ed<\/a>, tamb\u00e9m no Rio Grande do Sul, e em Itaja\u00ed<\/a>, em Santa Catarina. Em uma das opera\u00e7\u00f5es, o cheiro podre chamou a aten\u00e7\u00e3o de quem passava por perto do a\u00e7ougue clandestino e motivou a den\u00fancia. Em Santa Catarina, o esquema envolvia funcion\u00e1rios de uma empresa respons\u00e1vel por recolher as carnes vencidas e restos (ossos, peles e carca\u00e7as) de supermercados da regi\u00e3o. Foram encontrados 800 kg de carne podre revendida para churrascarias da regi\u00e3o.<\/p>\n

A\u00e7\u00f5es semelhantes ocorreram nos \u00faltimos meses em cidades como Macei\u00f3<\/a>, em Alagoas, Itabirito<\/a> e Belo Horizonte<\/a>, em Minas Gerais.<\/p>\n

Entramos em contato com o Sindicato Nacional dos Fiscais Federais Agropecu\u00e1rios para entender melhor o que houve durante este per\u00edodo e como a pandemia impactou o trabalho desses servidores. Recebemos diversas informa\u00e7\u00f5es sobre o sistema de inspe\u00e7\u00e3o e fiscaliza\u00e7\u00e3o e o estudo completo em que apontam defasagem no n\u00famero de fiscais, mas n\u00e3o houve interesse em dar entrevista.<\/p>\n

Consultado, o Minist\u00e9rio da Agricultura, Pecu\u00e1ria e Abastecimento limitou os questionamentos a quatro perguntas, uma pr\u00e1tica incomum no relacionamento entre jornalistas e assessores de um \u00f3rg\u00e3o p\u00fablico. Os questionamentos foram encaminhados, por e-mail, para a assessoria de imprensa, mas n\u00e3o houve resposta at\u00e9 o fechamento desta reportagem.<\/p>\n

Em nota, a JBS defende que a qualidade dos seus produtos \u00e9 reconhecida mundialmente e afirma que nenhum dos autos de infra\u00e7\u00e3o emitidos pelo MAPA “tem rela\u00e7\u00e3o com seguran\u00e7a ou qualidade final dos alimentos\u201d, embora os relat\u00f3rios mostrem diversas infra\u00e7\u00f5es que apontam para riscos \u00e0 sa\u00fade p\u00fablica.<\/p>\n

Segundo a empresa, “as unidades t\u00eam processos de controle rigorosos e, al\u00e9m de submetidas a inspe\u00e7\u00f5es p\u00fablicas, s\u00e3o auditadas por clientes bastante exigentes dos mercados interno e externo, que averiguam crit\u00e9rios de sanidade, qualidade, bem-estar animal, rastreabilidade, nutri\u00e7\u00e3o, entre outros. Todas as unidades da Companhia no Brasil possuem, por exemplo, a certifica\u00e7\u00e3o BRC (British Retail Consortium), principal refer\u00eancia global em garantia de seguran\u00e7a do alimento”.<\/p>\n

Sobre o embargo dos supermercados europeus, a JBS afirma que \u201cn\u00e3o tolera desmatamento, trabalho for\u00e7ado, uso indevido de terras ind\u00edgenas, unidades de conserva\u00e7\u00e3o ou viola\u00e7\u00f5es de embargos ambientais\u201d. E rebate os dados que motivaram o cancelamento. \u201cA Rep\u00f3rter Brasil menciona 5 dos 77.000 fornecedores diretos da JBS. Em rela\u00e7\u00e3o a esses 5 casos, ap\u00f3s uma auditoria criteriosa, nossa equipe de sustentabilidade apurou que, no momento da compra, eles estavam de acordo com a Pol\u00edtica de Compra Respons\u00e1vel da JBS e com o Protocolo de Monitoramento de Fornecedores de Gado do Minist\u00e9rio P\u00fablico Federal”. O texto afirma ainda que a JBS \u201cbloqueou de forma proativa mais de 14.000 fazendas fornecedoras por n\u00e3o cumprimento de nossas pol\u00edticas e padr\u00f5es\u201d.<\/p>\n

Entramos em contato com a BRF, mas a empresa n\u00e3o quis se manifestar.<\/p>\n

Enquanto isso, os brasileiros seguem sofrendo com a infla\u00e7\u00e3o galopante da carne, produtos de qualidade inferior e impr\u00f3prios para consumo. \u201cParece que deixam para a gente o \u2018quis\u00f4\u2019: o que sobrou\u201d, resume a dona de casa Luciana Candido.<\/p>\n

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Levantamento in\u00e9dito mostra que queixas sobre carne estragada e de m\u00e1 qualidade dispararam nos \u00faltimos dois anos no Brasil.<\/p>\n

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