{"id":49901,"date":"2021-02-23T05:15:05","date_gmt":"2021-02-23T05:15:05","guid":{"rendered":"https:\/\/theintercept.com\/?p=345863"},"modified":"2021-02-23T05:15:05","modified_gmt":"2021-02-23T05:15:05","slug":"ter-medo-de-que-fabiana-uma-reflexao-sobre-minha-avo-torto-arado-e-uma-lingua-apunhalada","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/radiofree.asia\/2021\/02\/23\/ter-medo-de-que-fabiana-uma-reflexao-sobre-minha-avo-torto-arado-e-uma-lingua-apunhalada\/","title":{"rendered":"\u2018Ter medo de que, Fabiana?\u2019: uma reflex\u00e3o sobre minha av\u00f3, \u2018Torto arado\u2019 e uma l\u00edngua apunhalada"},"content":{"rendered":"
\n\"header-tortoarado\"\n\n

Foto: Roger Ballen<\/p><\/div>\n

Minha av\u00f3 Rosa<\/u> lavava roupa em um rio l\u00e1 em Sap\u00e9, na Para\u00edba. N\u00e3o eram pe\u00e7as que ela, minha tia e meu pai usavam: as roupas pertenciam \u00e0s fam\u00edlias que viviam nas casas espa\u00e7osas da cidade. Passava horas, a semana toda, dentro d\u2019\u00e1gua. Quando ela contou sobre esse per\u00edodo, me ofertou uma cena que de certa maneira me reinaugurou: toda vez que vov\u00f3 sa\u00eda do rio as suas pernas estavam repletas de sanguessugas.<\/p>\n

Aquilo me apavorou.<\/p>\n

\u201cE a senhora voltava no outro dia pra \u00e1gua? N\u00e3o tinha medo?\u201d<\/p>\n

\u201cTer medo de que, Fabiana? Eu tinha que criar o seu pai\u201d.<\/p>\n

Desde ent\u00e3o, a imagem da minha av\u00f3 entrando novamente no rio para lavar roupa, apesar do cansa\u00e7o, apesar do sangue, apesar dos parasitas, \u00e9 meu amuleto e minha f\u00e9.<\/p>\n

<\/div>\n

\u201cTer medo de que, Fabiana?\u201d<\/p>\n

\n\"Group-1\"\n

Eu e o retrato de minha av\u00f3 Rosa.<\/p>\n

\nFoto: Arquivo Pessoal\/Fabiana Moraes<\/p><\/div>\n

A imers\u00e3o cont\u00ednua na \u00e1gua trouxe s\u00e9rios preju\u00edzos para suas pernas: os ossos se tornaram fr\u00e1geis, e ela, depois de uma queda, precisou colocar peda\u00e7os de platina para continuar de p\u00e9. Assim esteve durante muito tempo. Aos s\u00e1bados, montava uma barraca na feira livre da cidade e vendia sarapatel, comida feita com as v\u00edsceras do boi. Meu pai, crian\u00e7a, ajudava vendendo tapioca. Um dia, voltou chorando e contou que um homem havia batido nele. Vov\u00f3 n\u00e3o pensou duas vezes: pegou uma faca e foi atr\u00e1s do agressor.<\/p>\n

Fico pensando nessa mulher, aquela ind\u00edgena potiguara, com a faca na m\u00e3o. Buscava sozinha algum reparo para um filho ferido no interior do Brasil de 1960. Rosa fez de tudo: foi camareira em um hotel, foi para o Rio trabalhar como empregada dom\u00e9stica, fez meu pai estudar. Tinha uma vaca branca que adorava, a Cambraia. O meu av\u00f4, para tomar cacha\u00e7a, vendeu Cambraia sem lhe avisar. Um dia, ela cansou e mandou ele embora.<\/p>\n

\u201cTer medo de que, Fabiana?\u201d<\/p>\n

No mundo-Brasil repleto de estere\u00f3tipos, esse texto pode rapidamente aprisionar vov\u00f3 Rosa no que chamam de \u201cmulher-macho\u201d. Ou em uma esp\u00e9cie de hero\u00edna. Mas n\u00e3o: ela tinha, como voc\u00ea e eu, seus limites, seus erros e espa\u00e7os borrados. Lembro que, \u00e0s vezes, me mandava arrumar os cabelos e usar roupas mais delicadas, ficar mais \u201ccivilizada\u201d. Parecer menos preta, me parece.<\/p>\n

Vov\u00f3 foi mulher-mulher. Algu\u00e9m que entendia que ser doce n\u00e3o \u00e9 ser d\u00f3cil e que certos acordos s\u00e3o inegoci\u00e1veis. Algu\u00e9m que nunca teve medo de ser e de falar. Enquanto fui crescendo, pensei muito no que esse n\u00e3o calar custou \u00e0 minha av\u00f3, pois entendi que o mundo \u00e9 diferente para quem silencia e para quem fala. As consequ\u00eancias dessas escolhas s\u00e3o d\u00edspares: a primeira, teoricamente<\/a>, pode te proteger. A segunda, no limite, pode te matar (Marielle, presente).<\/p>\n

Percebi mais: pessoas negras com opini\u00e3o assustam, soam inconvenientes, \u201catrevidas\u201d. Pessoas negras que apenas sorriem e balan\u00e7am a cabe\u00e7a dizendo \u201csim, senhor\u201d s\u00e3o entendidas como muito educadas e f\u00e1ceis de conviver.<\/p>\n

Assim, eu deveria escolher: para gente como eu, j\u00e1 estavam reservadas poucas roupas pr\u00e9-fabricadas. Havia a fantasia da dif\u00edcil, havia a fantasia da d\u00f3cil. Assim como a minha v\u00f3, mulher-mulher, eu n\u00e3o me interessei por nenhuma. Preferi, muito carinhosamente, abrir outro caminho no mato. Para isso, precisei amolar minha faca.<\/p>\n

N\u00e3o conhe\u00e7o nenhuma pessoa que tenha tomado essa decis\u00e3o e tenha se arrependido. Igualmente, n\u00e3o conhe\u00e7o nenhuma pessoa que tenha tomado essa decis\u00e3o e n\u00e3o carregue muitos arranh\u00f5es.<\/p>\n

\u201cGente como eu\u201d: buceta, pele escura, vinda do morro. Uma vez, para me elogiar em um grupo de amigos ap\u00f3s a not\u00edcia de que eu ganhara um pr\u00eamio nacional, uma pessoa disse: \u201cningu\u00e9m dava nada por ela\u201d. Outra vez, estava perto de gente com muito dinheiro, investidores de arte e do mercado financeiro. Meio divertida, dei uma opini\u00e3o que se contrapunha ao que um dos endinheirados dizia. Ele parou por um momento. Olhou n\u00e3o para mim, mas para meu companheiro, um homem branco. \u201cEla \u00e9 danada, n\u00e9?\u201d. Quase todos riram. \u201cDanada\u201d, \u201catrevida\u201d, \u201cneguinha enxerida\u201d. Me mandaram calar a boca diversas vezes.<\/p>\n

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Desde que compreendi o que as sanguessugas nas pernas da minha av\u00f3 significavam, desde que entendi o que me cabia ao ver a minha m\u00e3e branca limpando hot\u00e9is e o meu pai negro vendendo fotografias sob o sol, eu quis entender mais o Brasil. Primeiro, saber sobre o que nos conformava \u00e0 pobreza, que nos era vendida como \u201cdestino\u201d. Depois, porque eu deveria me manter calada e por qual raz\u00e3o a opini\u00e3o de outras pessoas \u2013 n\u00e3o gente como eu \u2013 era facilmente assimilada. Eu estava interessada, enfim, em entender o poder.<\/p>\n

A\u00ed, finalmente, conheci uma irm\u00e3 da minha av\u00f3: o nome dela \u00e9 Gloria Jean Watkins e ela nasceu em 1952 muito longe de Sap\u00e9, em Hopkinsville, Kentucky, sul dos Estados Unidos. Enquanto vov\u00f3 lavava roupa, vendia sarapatel e defendia meu pai com uma faca, Gloria crescia e mudava o nome para bell hooks, uma homenagem \u00e0 sua bisav\u00f3.<\/p>\n

hooks me ajudou a entender que aquilo o que se poderia pensar como experi\u00eancia pessoal era, na verdade, uma quest\u00e3o coletiva. Mulheres negras cujas opini\u00f5es s\u00e3o ouvidas somente ap\u00f3s a autoriza\u00e7\u00e3o de outrem faziam (fazem) parte uma estrutura socialmente organizada \u2013 e organizadora.<\/p>\n

Quando decidiu que n\u00e3o iria se calar, e mais, que iria ensinar outras mulheres a fazer o mesmo, hooks escreveu: \u201cA fala intensa n\u00e3o era t\u00e3o amea\u00e7adora quanto o sil\u00eancio imposto\u201d.<\/b> A garota meteu o loko. Convidou os homens, brancos e pretos, a olharem para si: quase sempre, a fala reprimida delas resultava dos silenciamentos por eles impostos.<\/p>\n

\n\"bellhooks-2-e1602706726582\"\n

A norte-americana bell hooks me ajudou a entender\u00a0que minha\u00a0experi\u00eancia pessoal era, na verdade, uma quest\u00e3o coletiva.<\/p>\n

\nFoto: Montikamoss \/ Wikimedia Commons<\/p><\/div>\n

Afasta de mim esse cale-se, pai<\/strong><\/p>\n

Eu pensei muito em ambas, Rosa e bell, enquanto lia “Torto arado”, o livro fen\u00f4meno escrito por Itamar Vieira J\u00fanior sobre a hist\u00f3ria de duas irm\u00e3s, Bibiana e Belon\u00edsia. Tamb\u00e9m fiquei me encontrando naquelas p\u00e1ginas pensando em como, para fugir do tal \u201cdestino\u201d e das poucas roupas que me ofertaram, eu precisei articular um pouco de Bibiana, a que segura o livro; e um pouco de Belon\u00edsia, a que carrega o punhal (se voc\u00ea est\u00e1 passando uma temporada na lua e n\u00e3o ouviu falar sobre a elogiada obra, ganhadora de pr\u00eamios nacionais e internacionais, tem texto e entrevista <\/a>a respeito dela aqui <\/a>e aqui<\/a>).<\/p>\n

Tenho pensado mais ainda no livro, nas mulheres negras e no interdito desde que recebi no meu Facebook, h\u00e1 quatro semanas, uma mensagem privada do perfil de Itamar nessa rede.<\/p>\n

Nela, ele sugere que sou racista \u2013 afirma que eu preferiria que um homem branco estivesse no lugar de sucesso dele \u2013 por conta de um breve coment\u00e1rio que fiz, publicamente, sobre seu livro.<\/p>\n

Foi no meu Twitter. L\u00e1, escrevi:<\/p>\n


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Torto Arado \u00e9 um bom livro, mas: boa parte do entusiasmo vem do mercado editorial sublinhando obra que apazigua a m\u00e1 consci\u00eancia branca (lembrando aqui Allan da Rosa\/Baldwin). Excesso de didatismo incomoda. \u00c0s vezes parece aula pra pele clara entender.<\/p>\n

— fabiana moraes (@fabi2moraes) January 20, 2021<\/a><\/p><\/blockquote>\n