{"id":545957,"date":"2022-03-08T10:00:07","date_gmt":"2022-03-08T10:00:07","guid":{"rendered":"https:\/\/theintercept.com\/?p=389184"},"modified":"2022-03-08T10:00:07","modified_gmt":"2022-03-08T10:00:07","slug":"fernanda-vai-embora-sem-protecao-do-estado-travestis-juradas-de-morte-buscam-exilio","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/radiofree.asia\/2022\/03\/08\/fernanda-vai-embora-sem-protecao-do-estado-travestis-juradas-de-morte-buscam-exilio\/","title":{"rendered":"Fernanda vai embora: sem prote\u00e7\u00e3o do estado, travestis juradas de morte buscam ex\u00edlio"},"content":{"rendered":"
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Maria Clara e Fernanda: a primeira se exilou em 2017, a segunda est\u00e1 prestes a deixar o pa\u00eds.<\/p>\n

\nFoto: Arquivo Pessoal\/Fernanda Falc\u00e3o<\/p><\/div>\n

As casas de prostitui\u00e7\u00e3o<\/u> pipocaram por todo o Brasil a partir da devasta\u00e7\u00e3o de vidas e de empregos provocada pela pandemia. Em Pernambuco, que liderava a lista dos estados com maiores taxas de desocupa\u00e7\u00e3o do pa\u00eds em novembro de 2021 (19,3% da popula\u00e7\u00e3o<\/a>), v\u00e1rias delas est\u00e3o funcionando sob fachadas diversas, das j\u00e1 cl\u00e1ssicas que se vendem como bares at\u00e9 as granjas e s\u00edtios voltados para “festas e confraterniza\u00e7\u00f5es”.<\/p>\n

Sabendo que diversos prost\u00edbulos mant\u00eam mulheres cisg\u00eaneras e transg\u00eaneras em condi\u00e7\u00f5es bastante adversas (documentos pessoais s\u00e3o retidos pela cafetinagem, falta alimenta\u00e7\u00e3o adequada, h\u00e1 agress\u00f5es, aliciamento e presen\u00e7a de menores de idade) e que esse cen\u00e1rio havia piorado por conta da covid-19, um grupo que acompanha casos de tr\u00e1fico de pessoas passou a se aproximar destes espa\u00e7os.<\/p>\n

Fernanda Falc\u00e3o, t\u00e9cnica em enfermagem, coordenadora da Rede Nacional de Mulheres Travestis, Transexuais e Homens Trans Vivendo e Convivendo com HIV\/Aids e integrante do Grupo de Trabalho Positivo (GTP+), fazia parte dele.<\/p>\n

Por conta de uma den\u00fancia, ela e outros colegas foram at\u00e9 um prost\u00edbulo no bairro de Fosfato, em Abreu e Lima, cidade localizada na Regi\u00e3o Metropolitana de Recife. Ali, estava Bianca. Poucos dias antes,\u00a0Bianca, uma mulher transg\u00eanera, foi pega \u00e0 for\u00e7a por outras pessoas, que a agrediram e rasparam sua cabe\u00e7a. Depois, foi fotografada e sua imagem, em estado deplor\u00e1vel, passou a circular nas redes sociais.\u00a0Ela queria sair do local, mas tinha medo de sofrer mais viol\u00eancia. O grupo ouviu tanto ela quanto outras mulheres que tamb\u00e9m queriam deixar o lugar. A pol\u00edcia foi chamada para acompanhar o processo, mas n\u00e3o apareceu.<\/p>\n

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Nesse meio tempo, a autora da den\u00fancia foi identificada por dois homens que administravam o local: era Joana, que j\u00e1 conhecia Fernanda anteriormente. Come\u00e7aram a espanc\u00e1-la em retalia\u00e7\u00e3o. O grupo continuou a chamar a pol\u00edcia, que finalmente apareceu. Mas, ao ver o estado da denunciante, se recusaram a lev\u00e1-la ao hospital.\u00a0O motivo alegado: a jovem estava ensanguentada demais e iria sujar a viatura.<\/b> “Eu me senti muito mal, muito culpada pelo que Joana sofreu”, conta Fernanda. A PM apenas acompanhou a sa\u00edda de algumas das mulheres do prost\u00edbulo. Bianca, intimidada pelo espet\u00e1culo de viol\u00eancia que presenciou, permaneceu.<\/p>\n

No mesmo dia, \u00e0 noite, Fernanda estava em casa e se preparava para dormir quando ouviu um barulho. Foi at\u00e9 a janela que dava para o quintal e viu um homem com uma arma na m\u00e3o, dizendo que “ia calar a boca daquele viado”. Ela escutou outra pessoa e o som de uma moto. Correu\u00a0e se escondeu dentro da pr\u00f3pria casa quando passaram a chutar a porta. Ouviu as vozes de vizinhos e percebeu que havia gente conhecida na rua. Saiu correndo e pediu ajuda. Os homens montaram na moto e foram embora, ambos usando capacetes.<\/p>\n

Tudo isso aconteceu em junho de 2021. Desde ent\u00e3o, Fernanda, temendo ser assassinada, n\u00e3o voltou para casa e vive entre um canto e outro. Est\u00e1 na aterradora condi\u00e7\u00e3o de jurada de morte.<\/p>\n

\n\"20161219-cela-Ricardo-Laba\"\n

Presa em 2010, Fernanda foi colocada numa cela com 99 homens. Estuprada,\u00a0contraiu HIV sob a tutela do estado.<\/p>\n

\nFoto: Ricardo Lab\u00e1 para Ponte Jornalismo\/Reprodu\u00e7\u00e3o<\/p><\/div>\n

Esta foi a segunda vez que ela falou sobre viver e morrer para mim: eu a conheci em 2015, enquanto apurava informa\u00e7\u00f5es sobre pessoas que foram infectadas com o HIV dentro das unidades prisionais de Pernambuco. Foi o caso de Fernanda: ela e mais duas travestis foram presas em 2010 e colocadas em uma mesma cela com 99 homens. Estupros coletivos e outras barb\u00e1ries aconteceram durante semanas sob a tutela do estado. No pres\u00eddio, Fernanda contraiu o v\u00edrus, e, logo ap\u00f3s a not\u00edcia, entrou em depress\u00e3o profunda, virou um fiapo e quis morrer. Eu contei essa hist\u00f3ria aqui<\/a>.<\/p>\n

Sete anos depois, \u00e9 o contr\u00e1rio: Fernanda quer se manter viva. Para isso, depois de realizar uma campanha de financiamento para comprar a passagem a\u00e9rea, vai embora do pa\u00eds.<\/p>\n

Maria me envia um \u00e1udio sucinto: \u201ceu sa\u00ed do Brasil porque n\u00e3o tinha a garantia do estado para me proteger\u201d.<\/blockquote>\n

No outro lado do mundo, a ativista vai tentar encontrar outra mulher com corpo e hist\u00f3ria bastante semelhantes aos seus: \u00e9 Maria Clara de Sena, refugiada no Canad\u00e1 desde 2017, quando deixou o Brasil ap\u00f3s tamb\u00e9m ser jurada de morte. Fazia parte do Mecanismo de Preven\u00e7\u00e3o e Combate \u00e0 Tortura do governo pernambucano quando, durante uma visita t\u00e9cnica ao pres\u00eddio de Santa Cruz do Capibaribe, no agreste do estado, sofreu um atentado por parte de um agente penitenci\u00e1rio.<\/p>\n

Naquele momento, Maria ainda n\u00e3o tinha o nome social registrado nos documentos e, quando se apresentou para realizar o trabalho no local, foi constrangida pelo agente, que insistiu em cham\u00e1-la pelo nome do registro. Ela o corrigiu e ele n\u00e3o gostou: chamou-a de “viado preto” e colocou um rev\u00f3lver na sua cabe\u00e7a. A Secretaria de Justi\u00e7a e Direitos Humanos (SJDH) foi notificada sobre a amea\u00e7a grave e abriu um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) sobre o funcion\u00e1rio, que foi afastado das atividades por 30 dias<\/a>.<\/p>\n

Mas a hist\u00f3ria n\u00e3o terminou por a\u00ed: foi justamente por ter notificado o caso para o mesmo estado no qual trabalhava que Maria Clara passou a ser monitorada e assediada por outros agentes penitenci\u00e1rios. Nos pres\u00eddios que visitava, dias e semanas ap\u00f3s a amea\u00e7a, escutava gracejos e intimida\u00e7\u00f5es: chegavam a demonstrar espanto ao dizer que ela “ainda” permanecia viva.<\/p>\n

Maria entendeu o recado: procurou ajuda dentro do pr\u00f3prio governo estadual e foi inclu\u00edda no Programa Estadual de Prote\u00e7\u00e3o aos Defensores de Direitos Humanos. Mas a \u00fanica diferen\u00e7a pr\u00e1tica entre a nova condi\u00e7\u00e3o e a anterior foi um papel com seu nome. Al\u00e9m disso, n\u00e3o havia nada que efetivamente a protegesse das constantes amea\u00e7as.<\/p>\n

\n\"MariaeFernanda-Fabi\"\n

Fernanda e Maria Clara receberam prote\u00e7\u00e3o do estado de Pernambuco.\u00a0S\u00f3 no papel.<\/p>\n

\nFoto: Arquivo Pessoal\/Fernanda Falc\u00e3o<\/p><\/div>\n

Passou a ser seguida e a receber liga\u00e7\u00f5es n\u00e3o identificadas. Descobriram seu endere\u00e7o. Ela saiu de casa, foi morar em outro local, foi descoberta de novo. Depois, por alguns meses, saiu do estado, mas precisou voltar. A vida se transformou em um susto, como ela conta neste relato para a Marco Zero Conte\u00fado<\/a>.<\/p>\n

Dentro de um metr\u00f4 em Toronto, Maria me envia um \u00e1udio sucinto: “eu sa\u00ed do Brasil porque n\u00e3o tinha a garantia do Eestado para me proteger”.<\/p>\n

Essa \u00e9 outra rela\u00e7\u00e3o, para al\u00e9m da pele preta, do trabalho com direitos humanos e da transgeneridade, que Maria Clara possui com Fernanda: a t\u00e9cnica de enfermagem amea\u00e7ada dentro de casa tamb\u00e9m procurou o mesmo programa de prote\u00e7\u00e3o do governo.\u00a0Em\u00a022 de janeiro deste ano, finalmente recebeu um papel semelhante ao de Maria, al\u00e9m de R$ 200 disponibilizados durante tr\u00eas meses para um tratamento psicol\u00f3gico. E a prote\u00e7\u00e3o acabou por a\u00ed.<\/p>\n

Atrav\u00e9s da rede LGBTQIA+, a ativista conseguiu apoio de uma ONG irlandesa criada para prote\u00e7\u00e3o de defensores de direitos humanos, a Front Line Defenders. Foi assim que conseguiu passar tr\u00eas meses fora do estado. Quando voltou, sem poder ir para casa, sem dinheiro para pagar aluguel e sem se alimentar direito, a t\u00e9cnica em enfermagem ainda sofreu uma tentativa de sequestro: tentaram coloc\u00e1-la dentro de um carro quando ela caminhava na rua. Reagiu, teve os cabelos puxados, conseguiu sair correndo. Uma viatura da PM estava nas imedia\u00e7\u00f5es e ela pediu ajuda. Amenizaram a situa\u00e7\u00e3o e falaram que os “caras s\u00f3 deviam estar procurando por um programa”.<\/p>\n

(…)<\/p>\n

Naquele momento, vez de esperar ser assassinada, Fernanda decidiu que iria morrer por conta pr\u00f3pria: primeiro, tentou o suic\u00eddio. Depois, a exemplo da ativista e publicit\u00e1ria Neon Cunha, que em 2016 pediu na Justi\u00e7a o direito \u00e0 morte assistida<\/a> caso n\u00e3o pudesse mudar de nome e g\u00eanero em seus documentos sem ter que passar por cirurgias, tentou entrar com a mesma a\u00e7\u00e3o da Defensoria P\u00fablica Estadual, mas n\u00e3o foi atendida pelo \u00f3rg\u00e3o. O processo pedia um acompanhamento maior e, sem dinheiro para advogadas, Fernanda desistiu do pedido.<\/p>\n

No dia em que a reencontrei, no GTP+<\/a>, eu estava justamente com Neon Cunha, minha amiga, ao meu lado. Fiz algumas fotos das duas, cujas trajet\u00f3rias contam muito sobre como cada dia de exist\u00eancia de uma travesti e de pessoas transexuais no Brasil \u00e9 a conquista de um universo inteiro (e eu adoraria que isso fosse apenas um exagero fruto de escorpi\u00e3o com ascendente em c\u00e2ncer).<\/p>\n

\n\"FernandaFalcao-Fabi\"\n

Fernanda e Neon Cunha, ativista e publicit\u00e1ria no GTP+, de Recife.<\/p>\n

\nFoto: Fabiana Moraes<\/p><\/div>\n

Tchau, Fernanda<\/h3>\n

Vivendo hoje na condi\u00e7\u00e3o de refugiada no Canad\u00e1, Maria conta que est\u00e1 vendo aulas do curso Working with people in social sector,<\/i> voltado para trabalhos relativos \u00e0 assist\u00eancia social, refugiados, imigrantes e cidad\u00e3os canadenses. Tamb\u00e9m est\u00e1 estudando ingl\u00eas e planeja um livro escrito na nova l\u00edngua que est\u00e1 aprendendo. Depois de se aproximar de movimentos de direitos humanos naquele pa\u00eds, ela consegue tra\u00e7ar o contraste gigante entre l\u00e1 e c\u00e1. “No Canad\u00e1, as pessoas que trabalham com DH s\u00e3o ouvidas e conseguem fazer seu trabalho. No Brasil, o governo n\u00e3o ir\u00e1 fazer nada para mudar essa realidade se as pessoas afetadas n\u00e3o saberem do poder que elas t\u00eam”, diz.<\/p>\n

Para Fernanda, abrir uma campanha de financiamento n\u00e3o foi f\u00e1cil: ela via o ato como um quase acinte frente \u00e0 realidade que ela presencia\u00a0\u2013 e participa\u00a0\u2013 das pessoas travestis e transexuais no pa\u00eds. Mas, sem alternativas que garantam sua sobreviv\u00eancia, seguiu os conselhos de amigas pr\u00f3ximas, que a ajudaram a abrir a vaquinha virtual. Em menos de 24 horas, conseguiu o valor das passagens a\u00e9reas. Semanas depois, um visto tempor\u00e1rio de seis meses na Espanha. Nesse meio tempo no pa\u00eds europeu, ela planeja pedir asilo pol\u00edtico no Canad\u00e1. “Estou organizando documentos, quero aprender outra l\u00edngua, dar continuidade \u00e0 minha vida. Aqui, eu n\u00e3o posso mais ir aos espa\u00e7os LGBT, onde dialogava com os meus. Tenho conversado com as meninas, ensinando o que podem fazer para se fortalecer, os contatos das organiza\u00e7\u00f5es. Eu vou embora, mas queria ficar. As minhas manas est\u00e3o nas ruas, est\u00e3o passando fome. \u00c9 muito constrangedor, muito dif\u00edcil pedir dinheiro para as pessoas em meio a essa situa\u00e7\u00e3o. Mas eu n\u00e3o quero morrer, Fabiana, eu quero ficar viva. Eu tamb\u00e9m preciso cuidar de mim”.<\/p>\n

Tentei falar com algu\u00e9m da Secretaria de Justi\u00e7a e Direitos Humanos durante dias, mas o esfor\u00e7o empreendido pelo governo estadual nas redes sociais \u2013 com \u00eanfase no Instagram \u2013 foi inversamente proporcional \u00e0quele dispensado \u00e0 imprensa. Ali\u00e1s, \u00e9 um caso interessant\u00edssimo: existe um email Imprensa Secretaria de Justi\u00e7a e Direitos Humanos com o qual me comuniquei, existe um perfil da pasta no citado Instagram<\/a>, existe um site<\/a> da secretaria, mas a mesma n\u00e3o consta entre as listadas no site do governo<\/a>.<\/p>\n

Desde 2015, a pasta era encabe\u00e7ada por Pedro Eurico, que pediu afastamento em dezembro ap\u00f3s a economista Maria Eduarda Marques de Carvalho, sua ex-mulher, denunciar que era agredida e amea\u00e7ada de morte h\u00e1 25 anos pelo ex-secret\u00e1rio.<\/a> Eduardo Gomes de Figueiredo foi ent\u00e3o apresentado como nova pessoa \u00e0 frente da SJDH.<\/p>\n

Como n\u00e3o consegui falar diretamente com uma pessoa respons\u00e1vel pelo programa institu\u00eddo em 2012 pela Lei n. 14.912 <\/a>pelo ent\u00e3o governador Eduardo Campos, enviei as perguntas abaixo:<\/p>\n