{"id":89019,"date":"2021-03-23T04:15:18","date_gmt":"2021-03-23T04:15:18","guid":{"rendered":"https:\/\/theintercept.com\/?p=349223"},"modified":"2021-03-23T04:15:18","modified_gmt":"2021-03-23T04:15:18","slug":"nos-escandalizamos-com-a-fome-mas-sabotamos-as-possiveis-solucoes","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/radiofree.asia\/2021\/03\/23\/nos-escandalizamos-com-a-fome-mas-sabotamos-as-possiveis-solucoes\/","title":{"rendered":"Nos escandalizamos com a fome, mas sabotamos as poss\u00edveis solu\u00e7\u00f5es"},"content":{"rendered":"
\n\"headerft-NE\"\n\n

Foto: Marco Antonio Rezende\/Brazil Photos\/LightRocket via Getty Images<\/p><\/div>\n

O Brasil \u00e9 aquele pa\u00eds<\/u> que tem horror \u00e0 fome, \u00e0 ideia da fome, \u00e0 possibilidade da fome. N\u00e3o suporta pensar na sua proximidade: sabe que ela devasta o corpo, a dignidade, a vida. Mas o Brasil \u00e9 tamb\u00e9m o pa\u00eds que est\u00e1 totalmente acostumado \u00e0 sua presen\u00e7a, seja de forma real ou mediada: ela est\u00e1 no rapaz circulando perto dos carros e segurando um cartaz pedindo comida; na crian\u00e7a magra vista na mat\u00e9ria da revista; na campanha de arrecada\u00e7\u00e3o de alimento que mostra a fam\u00edlia, de prefer\u00eancia nordestina, em frente a um casebre.<\/p>\n

Os sentimentos circulam entre a revolta e uma desmobilizadora resigna\u00e7\u00e3o: repetimos que aquilo precisa ser combatido, que \u00e9 \u201cuma vergonha\u201d, que \u201co governo devia dar um jeito\u201d, que \u201cesse \u00e9 o Brasil\u201d. Todo esse horror geralmente tem um destino: no fim, a fome dos outros \u00e9 um problema dos outros \u2013 a n\u00e3o ser que ela sirva para nos entreter, para respaldar reportagem especial ou para apresentador da Globo mostrar \u201ca mis\u00e9ria\u201d em rede nacional e assim posar de salvador da p\u00e1tria. Falo j\u00e1 a respeito.<\/p>\n

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O fato \u00e9 que depois de passar algum tempo meio fora de moda, a falta de comida no prato voltou bombando ao notici\u00e1rio e \u00e0 vida nacional. Os motivos s\u00e3o diversos, mas aqui podemos sintetiz\u00e1-los: chegamos a mais de 39,9 milh\u00f5es de pessoas vivendo na mis\u00e9ria (renda de at\u00e9 R$ 89 por m\u00eas) e mais de 11 milh\u00f5es em situa\u00e7\u00e3o de inseguran\u00e7a alimentar, segundo o\u00a0 IBGE e Minist\u00e9rio da Cidadania<\/a>. \u00c9 um aumento de tr\u00eas milh\u00f5es de pessoas com fome nos \u00faltimos cinco anos. Esses n\u00fameros est\u00e3o desatualizados: neles n\u00e3o est\u00e1 inclu\u00edda a popula\u00e7\u00e3o de rua nem os \u00faltimos impactos da covid-19 no pa\u00eds. Consequentemente, voltamos ao Mapa da Fome<\/a> do qual sa\u00edmos somente em 2014, durante o governo Dilma.\u00a0A regi\u00e3o Nordeste concentra <\/a>quase metade (47%) da pobreza brasileira.<\/p>\n

Um \u00faltimo e n\u00e3o menos importante motivo: a fome e a pobreza como t\u00f3picos relacionados ao retorno de Lula \u00e0 corrida presidencial em 2022.<\/p>\n

Quero tratar desse \u00faltimo caso, j\u00e1 que ele est\u00e1 diretamente relacionado aos anteriores: falar nos governos petistas \u00e9 evocar o Bolsa Fam\u00edlia, o maior programa de transfer\u00eancia condicionada de renda do mundo<\/a> (em n\u00famero absoluto de pessoas assistidas). E falar no Bolsa Fam\u00edlia \u00e9, tamb\u00e9m, uma boa oportunidade para n\u00f3s, os n\u00e3o famintos, analisarmos a nossa rela\u00e7\u00e3o tantas vezes c\u00ednica com a pobreza e a fome, tratadas como se fossem entidades sobre as quais falamos, lemos e nos entretemos, mas sobre as quais n\u00e3o nos responsabilizamos efetivamente.<\/p>\n

A fome como esp\u00e9cie de Netflix n\u00e3o confessado.<\/p>\n

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Admito que foi com verdadeiro fasc\u00ednio que ouvi a jornalista Tha\u00eds Oyama, no canal My News, falar da elegibilidade do ex-presidente. Ao analisar que as classes D e E seriam disputadas por Bolsonaro e Lula em 2022, a profissional automaticamente trouxe o Nordeste como o endere\u00e7o \u00f3bvio dessa pobreza. Ali, ainda arrematou que, na regi\u00e3o, \u201cLula \u00e9 tido e havido como o pai dos pobres\u201d, afirma\u00e7\u00e3o que escuto bem mais na imprensa sul\/sudestina do que aqui em Pernambuco. A coisa avan\u00e7ou e galgou, eu diria, para o po\u00e9tico: em determinado momento, Oyama afirma<\/a> que o ex-presidente \u00e9 forte nestas terras porque trouxe \u201cum tempo de fartura, um tempo de pujan\u00e7a, as pessoas t\u00eam essa nostalgia\u201d.<\/p>\n

At\u00e9 ent\u00e3o, \u201cnostalgia\u201d, para mim, remetia \u00e0 saudade de um domingo na praia com a fam\u00edlia, \u00e0 lembran\u00e7a do primeiro ano na universidade, \u00e0 mem\u00f3ria do filho rec\u00e9m-nascido dormindo no ber\u00e7o. Nunca associei \u201cnostalgia\u201d \u00e0 extrema pobreza ou \u00e0 mis\u00e9ria, tampouco \u00e0s palavras \u201cfome\u201d, \u201curg\u00eancia\u201d, \u201cdesespero\u201d, \u201cnecessidade\u201d ou \u201cmorte\u201d. Fiquei pensando se isso \u00e9 por conta de algum ponto muito pouco sofisticado da minha cogni\u00e7\u00e3o ou se \u00e9 apenas mais uma prova do distanciamento absurdo que as classes m\u00e9dias e altas \u2013 e a maioria da imprensa \u2013 mant\u00eam com uma pobreza sobre a qual se sentem t\u00e3o \u00e0 vontade para falar.<\/p>\n

Ao mobilizar no seu argumento o conceito de \u201cnostalgia\u201d \u2013 reintroduzido no debate pol\u00edtico pelo norte-americano Mark Lilla<\/a> \u2013, Oyama inverte percep\u00e7\u00f5es e fatos. Situa o entendimento que os pobres brasileiros t\u00eam dos governos Lula no que o cientista pol\u00edtico chama de comportamento \u201creacion\u00e1rio\u201d, ou seja, no campo de quem se op\u00f5e \u00e0s transforma\u00e7\u00f5es supostamente \u201cprogressistas\u201d (neoliberalismo, desregulamenta\u00e7\u00e3o, etc.) em nome de um passado idilicamente imaginado.<\/p>\n