{"id":926922,"date":"2022-12-20T09:01:53","date_gmt":"2022-12-20T09:01:53","guid":{"rendered":"https:\/\/theintercept.com\/?p=417480"},"modified":"2022-12-20T09:01:53","modified_gmt":"2022-12-20T09:01:53","slug":"essa-gente-que-se-acha-desafia-o-poder-branco-e-rico","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/radiofree.asia\/2022\/12\/20\/essa-gente-que-se-acha-desafia-o-poder-branco-e-rico\/","title":{"rendered":"Essa gente ‘que se acha’ desafia o poder branco e rico"},"content":{"rendered":"
\n\"coluna-fabiana-moraes-desafio-poder-branco-rico-header\"\n\n

Ilustra\u00e7\u00e3o: Nicholas Steinmetz para o Intercept Brasil<\/p><\/div>\n

“Tu se acha”<\/u><\/a>. Quando escreveu o breve coment\u00e1rio<\/a> no perfil do artista Maxwell Alexandre, a escultora Natalia Gerschcovich desencadeou, sem saber, um processo p\u00fablico bastante pedag\u00f3gico sobre ra\u00e7a, ego, fetiche e representa\u00e7\u00e3o. A frase foi inserida em uma das postagens de Maxwell no Instagram, quando ele determinou que o Instituto Inhotim retirasse uma obra sua da exposi\u00e7\u00e3o Quilombo: vida, problemas e aspira\u00e7\u00f5es do negro<\/i>.<\/p>\n

N\u00e3o \u00e9 dessa quest\u00e3o que este texto trata (se quiser saber mais, leia a respeito aqui<\/a> ou no perfil do artista), mas do terremoto social causado quando uma pessoa preta, publicamente e sem pudor, “se acha”. Mais ainda: sobre a insist\u00eancia branca em trazer prioritariamente representa\u00e7\u00f5es que exibem pretos, ind\u00edgenas, pobres, nordestinos, etc. em sofrimento e vulnerabilidade, estrat\u00e9gia de poder e coloniza\u00e7\u00e3o muitas vezes apresentada como uma her\u00f3ica “den\u00fancia”.<\/p>\n

Ao entrar no perfil da escultora que o criticava negativamente, Maxwell se deparou com trabalhos nos quais a artista, por exemplo, esculpe meninos negros em situa\u00e7\u00e3o de rua. H\u00e1 tamb\u00e9m imagens dessas crian\u00e7as reproduzidas em pratos. Em uma escultura particularmente medonha, um garoto aponta uma arma para a pr\u00f3pria cabe\u00e7a. Em outras, vemos meninos muito magros dormindo pelas ruas, em posi\u00e7\u00e3o fetal. A maioria est\u00e1 sem camisa, descal\u00e7a. A s\u00e9rie foi batizada como “Crian\u00e7as invis\u00edveis”.<\/p>\n

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Sim, voc\u00ea j\u00e1 viu bastante esses meninos pelas ruas, e a artista argentina, que vive no Rio, n\u00e3o est\u00e1 reproduzindo uma realidade paralela, um mundo n\u00e3o tang\u00edvel. Em um pa\u00eds que h\u00e1 muito figura entre aqueles com maior \u00edndice de desigualdade social, crian\u00e7as violadas e sem prote\u00e7\u00e3o n\u00e3o s\u00e3o, infelizmente, novidade. No entanto, o que a escolha da escultora revela (e \u00e9 importante dizer que esse movimento n\u00e3o \u00e9 individual, mas coletivo e compartilhado no campo das artes, da m\u00eddia e no imagin\u00e1rio social) \u00e9 a prefer\u00eancia em iluminar \u2013 e se capitalizar \u2013 com a condi\u00e7\u00e3o de sofrimento de gente vulner\u00e1vel.<\/p>\n

Afinal, o que crian\u00e7as pretas e pobres fazem quando n\u00e3o est\u00e3o sujas, descal\u00e7as, fora da escola, famintas? O que homens negros pobres, outro exemplo, fazem quando n\u00e3o est\u00e3o sendo presos ou assassinados? Ali\u00e1s, quando eu escrevo “homens negros”, que imagens v\u00eam imediatamente \u00e0 sua cabe\u00e7a? Tenho quase certeza que n\u00e3o s\u00e3o representa\u00e7\u00f5es de felicidade, lazer, sucesso. N\u00e3o s\u00e3o imagens de homens pretos vivos, orgulhosos e amando \u2013 inclusive, a si mesmos.<\/p>\n

Em “Casa de Alvenaria<\/a> (volume 2: Santana)”, a escritora Carolina Maria de Jesus exp\u00f5e explicitamente essas violentas opera\u00e7\u00f5es de reitera\u00e7\u00e3o da condi\u00e7\u00e3o de sofrimento. Ela conta como muitos jornalistas pediam que ela, j\u00e1 morando em um sobrado no bairro de Santana, em S\u00e3o Paulo, voltasse para a Favela do Canind\u00e9, da qual havia sa\u00eddo, para ser fotografada. Pediam tamb\u00e9m que colocasse as roupas e o len\u00e7o que usava quando vivia no barrac\u00e3o. \u00c0s vezes, posava revirando latas de lixo, como fazia no passado. Afinal, era importante para os jornais mostrar a aparentemente contradit\u00f3ria condi\u00e7\u00e3o de escritora e “favelada”.<\/p>\n

O Profiles de Gente que se Acha era, na verdade, o Profiles de Gente que nos Afronta.<\/blockquote>\n

Algo similar aconteceu quando ela escreveu “Peda\u00e7os da Fome”, em 1963. A escritora n\u00e3o batizou o livro com este t\u00edtulo: originalmente, a obra se chamaria “A Felizarda”. Sua editora, no entanto, preferiu resgatar o fio pelo qual Carolina havia se tornado uma celebridade, o cl\u00e1ssico “Quarto de Despejo”, no qual narra o cotidiano na favela. O primeiro t\u00edtulo era uma ironia da escritora para falar das desventuras de Maria Clara, personagem que cai em desgra\u00e7a ap\u00f3s se casar com um homem de m\u00e1 \u00edndole. Mas a criatividade e o deboche de Carolina foram suplantados pela insist\u00eancia em mant\u00ea-la em um lugar mais conhecido publicamente: o da fome e da necessidade, n\u00e3o o da inventividade. Pode-se dizer que Carolina era mais interessante, notici\u00e1vel, enquanto ocupava n\u00e3o o lugar de escritora, mas o de escritora e miser\u00e1vel<\/b>.<\/p>\n

Os epis\u00f3dios vividos por Maxwell e Carolina exp\u00f5em uma opera\u00e7\u00e3o bastante perversa, na qual a visibilidade de gente em situa\u00e7\u00e3o vulner\u00e1vel \u00e9 reiterada a partir de um recorte espec\u00edfico, o da dor. Ele n\u00e3o permite associarmos pessoas que nos acostumamos a ver como coitadas ou incapazes a gestos de poder e autonomia. E, quando isso acontece, gera espanto \u2013 aqui, no caso do artista, traduzido em um racista “tu se acha”.<\/p>\n

Afinal, h\u00e1 quanto tempo, para ficar somente no campo das artes, lidamos com vaidades enormes, \u00e0s vezes classificadas simplesmente como “exc\u00eantricas” ou muito admiss\u00edveis, uma vez que o dono do ego reluzente \u00e9 um branco “artista genial”? Sobre isso, Maxwell, que nos \u00faltimos anos ganhou espa\u00e7o e dinheiro nesse circuito fechado e ainda majoritariamente de elite, escreveu:<\/p>\n

irm\u00e3os, o jogo da arte \u00e9 sobre ego e vaidade, se tu se despir disso tu vai ser atropelado. muita vaidade na maneira como os brancos agem. importante a gente mapear esses comportamentos e entender o pq s\u00f3 a vaidade deles \u00e9 v\u00e1lida. a vaidade silenciosa. eles ainda querem manter o controle da narrativa, da representa\u00e7\u00e3o e dos nossos corpos. se um preto se envaidecer \u00e9 perigoso para eles. por isso condenam nossa vaidade e ego. nos querem subjugados, calados, obedientes.<\/p><\/blockquote>\n

Fa\u00e7o quest\u00e3o de estudar esse “tu se acha” h\u00e1 mais de uma d\u00e9cada, quando entendi que a frase era quase sempre um rebate a a\u00e7\u00f5es de emancipa\u00e7\u00e3o e autoestima de pessoas que, no pacto da falsa “democracia racial”, deveriam “ficar em seus lugares”: mulheres, pretas, pobres, bichas, travestis. Investiguei a rela\u00e7\u00e3o entre celebridades e pobreza<\/a> e analisei, entre outros ve\u00edculos, um site (j\u00e1 extinto) chamado Profiles de Gente que Se Acha<\/a>, ou Blog da PGA.<\/p>\n

Era 2010, uma outra era na internet, mas as redes sociais j\u00e1 serviam como mat\u00e9ria-prima para que os autores da p\u00e1gina selecionassem, em plataformas como o Facebook, imagens de pessoas que se retratavam, se exibiam. Mostravam suas casas de paredes descascadas ou tijolos aparentes, mostravam o corpo gordo, o corpo preto, o corpo trans ou travesti, o corpo geralmente n\u00e3o vis\u00edvel nas revistas de celebridades, nas dire\u00e7\u00f5es de empresas e demais espa\u00e7os legitimados de poder.<\/p>\n

Justamente por isso, eram motivo do riso e do escracho p\u00fablico: como ousavam colocar suas exist\u00eancias perif\u00e9ricas aos olhos de todos? Mas, apesar dos achaques, elas n\u00e3o deixaram, ao longo dos anos, de aparecer ainda mais. Como eu escrevi na \u00e9poca, elas, felizmente, “se achavam” e entendiam que tamb\u00e9m eram dignas de surgir publicamente e rachar o padr\u00e3o de visibilidade magro, branco, jovem, rico. O Profiles de Gente que se Acha era, na verdade, o Profiles de Gente que nos Afronta.<\/p>\n

Naquele mesmo in\u00edcio de d\u00e9cada, n\u00e3o posso deixar de trazer aqui, a DJ Lala K, uma das criadoras da festa Sem Lo\u00e7\u00e3o<\/a>, estava indo trabalhar, durante o carnaval. Para conseguir atravessar a multid\u00e3o em Olinda e garantir tanto a sua integridade quanto a do equipamento que levava, contratou um seguran\u00e7a. Enquanto atravessava o roj\u00e3o de gente, ouviu uma mulher se espantar e dizer: “Quem essa negrinha pensa que \u00e9 para estar com seguran\u00e7a?”. O chilique racista foi devolvido com gra\u00e7a, inven\u00e7\u00e3o e beleza, essas coisas de preto: ali, surgia a festa Seguran\u00e7as de Lala K – Quem essa negrinha pensa que \u00e9?<\/i>, at\u00e9 hoje parte do freje carnavalesco de Pernambuco.<\/p>\n

Eu ouvi algo com certa similaridade: quando ganhei meu primeiro Pr\u00eamio Esso, em 2007, um homem branco, ao me ver chegar na reda\u00e7\u00e3o ap\u00f3s receber a honraria no Rio de Janeiro, gritou, em tom jocoso: “Esso, Esso, Esso: a neguinha \u00e9 um sucesso”. Nunca esqueci. Ele estava, na sua cabe\u00e7a forjada no racismo brasileiro, “apenas brincando”.<\/p>\n

\n\"A\n

A obra ‘Santa Cruz’, do artista Maxwell Alexandre.<\/p>\n

\nFoto: Reprodu\u00e7\u00e3o<\/p><\/div>\n

Negros na piscina<\/h3>\n

Confrontar as quest\u00f5es sobre representa\u00e7\u00e3o e poder s\u00e3o fundamentais para alcan\u00e7ar uma democracia para al\u00e9m das geralmente superficiais pol\u00edticas de “diversidade”. Desde que entrei em uma reda\u00e7\u00e3o, h\u00e1 mais de 20 anos, percebi como eram homog\u00eaneas as formas de falar e retratar pessoas pobres, pretas, travestis, etc. Vi, de dentro, como geralmente nem precis\u00e1vamos abrir a boca: j\u00e1 \u00e9ramos vistas como incapazes de algo para al\u00e9m de servir e, no melhor dos casos, entreter. Mas, estando dentro da m\u00e1quina, entendi que tamb\u00e9m podia, a partir dela, produzir formas de contradiscurso. Para isso, bastava, por exemplo, falar n\u00e3o sobre travestis assassinadas, mas vivas, trabalhando, sonhando, desejando e querendo uma vida boa, assim como eu e voc\u00ea. Uma vez falei com D\u00e1vila, que adorava frequentar a piscina p\u00fablica de seu bairro. Escrevi sobre ela, cuja foto est\u00e1 no texto, aqui<\/a>.<\/p>\n

Com o tempo, entendi que mostrar popula\u00e7\u00f5es como sempre infelizes e desesperadas tamb\u00e9m era uma forma de marcar o pr\u00f3prio lugar de her\u00f3i \u2013 e geralmente s\u00e3o pessoas ou empresas brancas que det\u00eam o monop\u00f3lio da representa\u00e7\u00e3o. Ou seja: mostrar algu\u00e9m em cont\u00ednuo sofrimento \u00e9 uma forma de coloniza\u00e7\u00e3o e manuten\u00e7\u00e3o do poder.<\/b> Sim, havia e h\u00e1 sofrimento na vida da maioria da popula\u00e7\u00e3o brasileira, cujo acesso a uma cidadania b\u00e1sica \u2013 transporte, escolas, saneamento, lazer, seguran\u00e7a \u2013 \u00e9 prec\u00e1rio. Mas esse sofrer, sem romantiza\u00e7\u00e3o e enxergando o \u00f3bvio, nunca impediu (na verdade, muitas vezes impulsionou) movimentos coletivos de emancipa\u00e7\u00e3o e alegria, como o maravilhoso Gr\u00eamio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, criado em 1975 por Candeia<\/a>. O sambista, felizmente, se achava.<\/p>\n

Essa percep\u00e7\u00e3o \u00e9 o mote da exposi\u00e7\u00e3o Negros na Piscina<\/a>, que desenhei ao lado do curador Moacir dos Anjos. Nela, est\u00e3o reunidas representa\u00e7\u00f5es de felicidades coletivas e, portanto, pol\u00edticas: o banquete reunindo fam\u00edlias pretas (obra de Renata Felinto); as polaroids que mostram a orgulhosa V\u00eanus Val Souza; os anivers\u00e1rios e casamentos fotografados pelos Retratistas do Morro; as faixas de miss feitas por Bispo do Ros\u00e1rio; os forr\u00f3s feitos pelas m\u00e3os delicadas de Mestre Vitalino; o jovem negro de p\u00e9 sobre um \u00f4nibus, uma das Caravelas de Hoje pintadas por Maxwell Alexandre.<\/p>\n

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Tem tule, tem sonho, tem piscina e tem futuro em diversas outras obras que comp\u00f5em a mostra, em cartaz at\u00e9 meados de maio de 2023 na Pinacoteca do Cear\u00e1, Fortaleza (ali\u00e1s, \u00e9 significativo como o investimento em cultura no estado, que tamb\u00e9m inaugurou um enorme centro de artes no Cariri<\/a>, n\u00e3o ganha espa\u00e7o nos jornal\u00f5es). Em um pa\u00eds que destruiu durante tanto tempo a auto-estima da maioria de sua popula\u00e7\u00e3o, s\u00f3 a tolerando quando ela respondia educadamente “sim, senhor”, \u00e9 preciso entender que pretos, bichas e todas as pessoas perif\u00e9ricas “que se acham” est\u00e3o tamb\u00e9m reconquistando sua humanidade. E exibir essas express\u00f5es \u00e9 fundamental.<\/p>\n

Termino contando um presente inesquec\u00edvel que ganhei quando estava voltando justamente da montagem e inaugura\u00e7\u00e3o da exposi\u00e7\u00e3o. Na sala de embarque do aeroporto, \u00e0s 7h30 da manh\u00e3, me deparei com uma mulher alta, de cabelos muito curtos, vestindo uma reluzente blusa de paet\u00eas prateados. Usava ainda um colar de p\u00e9rolas, saia e saltos altos dourados. Era uma celebra\u00e7\u00e3o, um espet\u00e1culo, um VR\u00c1 elegante no meio da monotonia dos jeans e camisetas. Sentou pr\u00f3xima a mim e eu n\u00e3o resisti: me aproximei e elogiei seu brilho.<\/p>\n

Camilla Requi\u00e3o, que trabalha como cuidadora, tinha sa\u00eddo de Goi\u00e1s \u00e0s 18h do dia anterior e seguia para uma celebra\u00e7\u00e3o em Recife. “A\u00ed j\u00e1 vim arrumada para a festa”, contou. Ela me passou seu telefone e, mais tarde, mandei mensagem e perguntei se podia postar uma foto que fiz enquanto ela aguardava a bagagem. A resposta foi maravilhosa: Camilla n\u00e3o s\u00f3 permitiu, como tamb\u00e9m enviou uma s\u00e9rie de imagens\u00a0 nas quais ela aparece igualmente chique, brilhante, montada, bonita, feliz, negra e orgulhosa de si. Eu as divido aqui, ap\u00f3s a permiss\u00e3o dela, como presente tamb\u00e9m para voc\u00eas.<\/p>\n

\n\"camilla-requiao\"\n

Parte das imagens enviadas por Camilla.<\/p>\n

\nFoto: Arquivo Pessoal\/Camilla Requi\u00e3o<\/p><\/div>\n

Desejo um 2023 no qual Camilla, Maxwell, Carolina, Lala, eu e todas as pessoas historicamente vistas como pouco, vistas como nada, vistas como descart\u00e1veis, se achem. Que a gente se ache e se ame muito, entendendo que nosso fortalecimento n\u00e3o se d\u00e1 por meio de projetos meramente individuais, mas principalmente em rede. Em um pa\u00eds que ensinou tantas formas de auto-\u00f3dio, amar a si \u00e9 urgente. Desejo um pa\u00eds onde toda Ester esteja viva e dan\u00e7ando Vogue<\/a>. Desejo um pa\u00eds que n\u00e3o volte a eleger um destruidor e amante do fascismo. Feliz 2023, pessoal.<\/p>\n

PS: Deixo ainda um banho de gente que se acha dan\u00e7ando na pista (ou na piscina):<\/p>\n