EM MEIO AO ARSENAL de memes bizarros que extremistas de direita exibem nos comícios de Trump e compartilham de forma obsessiva na internet, um dos mais perturbadores, por sua referência histórica assustadora, é o da “serpente hoppeana” — em inglês, “Hoppean Snake”. As imagens normalmente apresentam o réptil enrolado e ostentando o quepe de oficial do general chileno Augusto Pinochet. Ao fundo, as ilustrações costumam mostrar representações infantis de helicópteros lançando figuras humanas à morte, as quais gritam “Aaaahhh” em rabiscos quase ilegíveis. Em uma de suas muitas variantes, a serpente fantasiada de Pinochet proclama com sorriso irônico: “Sou mau por jogar pessoas de helicópteros? Falso. Comunistas não são pessoas.” Não está claro por que Pinochet é retratado como uma serpente, embora a inspiração recalcitrante possa estar na bandeira de Gadsden, que traz o lema “Não pise em mim”.
Longe de ser uma homenagem brincalhona a Pinochet — um golpista, tirano, torturador, assassino em massa, fantoche da CIA e odiento em relação a tudo que é socialista, mandatário do Chile de 1973 a 1990 —, o totem fetichizado pelos paramilitares dos EUA traz um significado funesto. Quando grupos como Boogaloo Boys, Proud Boys, Three Percenters, Oath Keepers e trumpistas armados, entre outros, vestem camisetas que oferecem “passeios de helicóptero grátis”, eles aludem a um programa de extermínio.
Após o golpe de Estado de Pinochet, em 1973, que encerrou o curto e turbulento governo de Salvador Allende — presidente democraticamente eleito e marxista declarado —, milhares de apoiadores de Allende foram mortos, dezenas de milhares de supostos inimigos do regime golpista foram torturados e milhares de pessoas desapareceram — com frequência, depois de serem levadas por um helicóptero militar e jogadas das alturas. Às vezes, esse passeio de helicóptero gratuito incluía abrir as entranhas das vítimas sequestradas, ainda vivas, para que seus corpos não flutuassem quando jogados no mar.
“A serpente hoppeana está utilizando imagens anticomunistas dos tempos da Guerra Fria, de uma história antes dissimulada de brutalidade e terrorismo de direita que utilizava o aparato militar dos EUA”, explica o fotojornalista investigativo Jeff Schwilk, que documenta a iconografia do movimento alt-right desde 2016. “Pinochet remete especificamente ao apogeu dos esquadrões da morte apoiados pelos EUA nos anos 1960, 1970 e 1980, do Programa Phoenix, no Vietnã, a Suharto, na Indonésia, e aos Contras, na Nicarágua. É uma ameaça direta da intenção de violência mortal massiva e de futuros esquadrões da morte que têm como alvo a esquerda norte-americana e qualquer outra pessoa considerada inimiga. Revela a verdadeira natureza desta ideologia.”
Em 27 de janeiro, o Departamento de Segurança Interna dos EUA emitiu um boletim de recomendações sobre terrorismo alertando em relação à ameaça contínua de radicais de extrema direita. O ataque de 6 de janeiro ao Capitólio foi considerado um mero prólogo dos “EDVs” — extremistas domésticos violentos — agora “encorajados […] a visar representantes eleitos e instalações de governo”. A nota também menciona ameaças “contra infraestruturas essenciais, incluindo os setores de energia, telecomunicações e saúde”.
Após a eleição de Allende em 1970, indivíduos da direita chilena formaram um grupo paramilitar chamado Patria y Libertad, que não era muito diferente, em espírito, das milícias agora comuns na direita dos EUA, embora contasse com financiamento estrangeiro e treinamento — cortesia da CIA. O grupo esteve envolvido em incêndios criminosos, assassinatos e ataques a instalações de infraestrutura do Chile — exatamente o que o Departamento de Segurança Interna dos EUA informa que devemos esperar dos extremistas norte-americanos.
VI A IMAGEM da serpente hoppeana pela primeira vez durante a edição de um livro de ensaios e fotos publicado em 2020 por Schwilk, intitulado Unflattering Photos of Fascists: Authoritarianism in Trump’s America [Fotos perturbadoras de fascistas: autoritarismo na América de Trump]. O autor tentou encontrar um mínimo de humor nas fantasias e na ostentação alt-right. No caso da serpente hoppeana, à primeira vista há algo de cômico: um réptil sorridente pintado com cores de giz de cera, bonecos-palitos mergulhando, a ilusão de uma ameaça comunista aos EUA (me pergunto quem são esses comunistas. Democratas capitalistas e corporativos como Nancy Pelosi e Chuck Schumer?), tudo sugestivo de uma propaganda ignorante e inócua. Mas essas imagens e a história que elas evocam estão longe de ser inofensivas.
A origem do nome da serpente, quando Schwilk a relatou pela primeira vez, parecia reforçar essa crença. Antes de estar sob os holofotes da épica luta da extrema direita, o imigrante alemão nascido nos EUA Hans-Hermann Hoppe foi um economista liberal esquecido que passou a vida nas masmorras acadêmicas da Universidade de Nevada, em Las Vegas. No reduto da economia liberal, Hoppe atuou na linha auxiliar de seu herói e amigo íntimo, Ludwig von Mises, considerado, ao lado de Friedrich August von Hayek, um dos principais baluartes da chamada Escola Austríaca de Economia.
Essa escola de pensamento postulou que a sociedade não existia, exceto como concatenação de escolhas individuais no mercado. O indivíduo seria tudo; a sociedade, mera reflexão tardia de muitas criaturas atomizadas. Qualquer tentativa de conciliar interesses dos átomos em conflito — por exemplo, na tomada democrática de decisões via sufrágio universal — seria uma forma opressora de intervenção estatal. A contribuição de Hoppe para essa perspectiva foi Democracia, o Deus que falhou (2001), cujo título resume a mensagem da publicação.
‘A serpente hoppeana está utilizando imagens anticomunistas dos tempos da Guerra Fria, de uma história antes dissimulada de brutalidade e terrorismo de direita que utilizava o aparato militar dos EUA’.
O fato de a cobra ser “hoppeana” começa a fazer uma espécie de sentido conspiratório quando você considera a carreira do irmão intelectual de Mises, Hayek, falecido em 1992. Grande admirador de Pinochet, Hayek visitou o Chile em 1975 para conhecer o ditador e celebrar e aconselhar o desmantelamento dos programas de bem-estar social do país, a privatização geral de bens públicos e a desregulamentação de juros corporativos. Ao lado de Milton Friedman, Hayek está entre os embaixadores do neoliberalismo no Chile fascista descrito por Naomi Klein em A Doutrina do Choque. Como escreve o historiador Greg Grandin, “Hayek vislumbrou em Pinochet o avatar da verdadeira liberdade, que governaria como ditador apenas por um ‘período de transição’, somente o tempo necessário para reverter décadas de regulamentação estatal.” A preocupação dos liberais — Hayek, Friedman e seus pares — era a liberdade dos negócios para ganhar mais dinheiro, e não a dos humanos assassinados e torturados para promover o grande projeto de liberdade corporativa.
O que conferiu a Hoppe a honra de extrema direita de ser associado ao regime homicida de Pinochet, no entanto, não foi a introdução do neoliberalismo no Chile, e sim as reflexões sobre o deus democrático que falhou. Hoppe afirma que a “remoção física” de cidadãos indesejáveis será exigida como parte de um “pacto” libertário putativo. “Não pode haver tolerância”, afirma Hoppe, “em relação aos democratas e comunistas em uma ordem social liberal. Eles terão que ser fisicamente separados e expulsos da sociedade. Da mesma forma, em uma aliança fundada com o propósito de proteger a família e os entes próximos, não pode haver tolerância para com aqueles que habitualmente promovem estilos de vida incompatíveis com este objetivo. Eles — os defensores de estilos de vida alternativos, não centrados na família, como, por exemplo, hedonismo individual, parasitismo, culto ao ambiente natural, homossexualidade ou comunismo — terão que ser fisicamente removidos da sociedade, também, caso se queira manter uma ordem liberal.”
Quando escrevi a Hoppe para perguntar, como mencionei em um e-mail, sobre seu nome “estar associado a um meme que celebra o assassinato em massa”, ele respondeu: “Sua pergunta — e insinuação — indica que você é completamente ignorante a respeito da minha pessoa e do meu trabalho intelectual. Mesmo com os baixos padrões intelectuais da maioria dos jornalistas e do jornalismo contemporâneos, [isso] me parece escandaloso e imprudente. Como até mesmo um estudo superficial de meu site revelaria, há mais de 40 anos sou um defensor intelectual do direito de propriedade privada, dos mercados livres, da liberdade de contrato e associação e da paz.”
Quando o pressionei sobre a vinculação de suas ideias ao meme da serpente, ele respondeu: “O que eu sei? Tem muita gente maluca por aí!”. Talvez ele devesse falar isso aos extremistas que o adotaram como avatar para uma doutrina de terror.
Tradução: Ricardo Romanoff
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