Diante de um Senado omisso, André Mendonça negou o inegável

Mendonça negou todas as suas ações à frente do Ministério da Justiça e na AGU e pensa como um fundamentalista religioso. Mas os senadores, inclusive os do PT, não viram problema nisso.

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Foto: Anderson Riedel/PR

“Não tem essa historinha de estado laico, não. É estado cristão! E quem for contra que se mude”, gritou o candidato Jair Bolsonaro em um comício de 2017, quando dava os primeiros passos da sua campanha eleitoral. A promessa de transformar o país em um estado teocrático era clara. Hoje, como presidente, não se pode negar que a promessa está sendo cumprida à risca. A indicação de André Mendonça para o STF é mais um tijolo na construção do estado teocrático prometido por Bolsonaro. Não foram as credenciais jurídicas que levaram Mendonça a ser escolhido, mas justamente o fato dele ser “terrivelmente evangélico”, como Bolsonaro fez questão de registrar.

Mendonça, que também é pastor presbiteriano, negou fatos inegáveis enquanto era sabatinado no Senado. Negou ter usado a Lei de Segurança Nacional para intimidar opositores de Bolsonaro quando foi ministro da Justiça, o que foi exatamente o que ele fez contra Ciro Gomes. Negou ter usado o cargo de ministro da Justiça para atuar como advogado de defesa de bolsonaristas, mas, em uma ação inédita, entrou com pedido de habeas corpus para Weintraub, investigado pelos ataques ao STF. Na AGU, pediu também um outro habeas corpus para blindar Pazuello em seu depoimento na CPI da Covid.

Negou também que sua religião interferirá nas suas decisões como ministro do STF, apesar de ter pedido a suspensão dos decretos baixados por governadores e prefeitos que proibiam celebrações religiosas durante a pandemia. À época, Mendonça declarou: “Não há cristianismo sem vida em comunidade, sem a casa de Deus e sem o ‘dia do Senhor’. Por isso, os verdadeiros cristãos não estão dispostos jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto”. Esse foi o chefe da AGU externando o pensamento similar ao de um fundamentalista religioso.

Mendonça prometeu durante a sabatina: “Eu defenderei o direito constitucional do casamento civil de pessoas do mesmo sexo”. Pastores evangélicos imediatamente cobraram uma retratação do novo ministro. Mas o deputado Sóstenes Cavalcante, do Democratas, que é seu aliado, disse que foi feita uma interpretação equivocada dessa fala, que foi “treinada” e “calculada”, e que não haverá defesa do casamento gay no STF. Traduzindo Sóstenes: Mendonça negou o inegável para ser aprovado na sabatina.

Houve senadores da oposição que parecem ter acreditado nas histórias da carochinha contadas pelo futuro ministro durante a sabatina. Mas, em uma coletiva logo após ter sido sabatinado, Mendonça tirou a máscara e disse que sua aprovação no Senado significava “um passo para o homem, e um salto para os evangélicos”, parafraseando Neil Armstrong ao pisar na lua. Para o futuro ministro a sua indicação tem uma grandeza comparável à chegada do homem à lua. Outro pensamento parecido ao de um fundamentalista religioso. O presidente comemorou a aprovação, agradeceu aos senadores e destacou o seu compromisso de levar um “terrivelmente evangélico” ao Supremo.


A indicação praticamente não encontrou resistência no Senado. Mendonça entrou na sabatina com o jogo ganho. A oposição parece que não entendeu — ou não quis entender — que a indicação de Mendonça representa um avanço na formação do estado teocrático projetado por Bolsonaro.

Não houve qualquer articulação para barrá-lo. O PT não fez questão de se mobilizar contra a indicação. A emedebista Simone Tebet e Alessandro Vieira, do Cidadania, que se opuseram fortemente a Bolsonaro na CPI da Covid, resolveram dar um voto de confiança para Mendonça — o homem que, para poder liberar os cultos durante a pandemia, disse que os cristãos dispostos a morrer de covid. Essa omissão é uma vergonha para quem se diz defensor do estado de direito, do estado laico e da ciência.

A turma da chamada terceira via, aquela que se vende como liberal de centro-direita, também comemorou. O candidato Sergio Moro, de olho no voto evangélico que hoje é majoritariamente de Bolsonaro, celebrou a aprovação da escolha terrivelmente evangélica do seu antigo patrão.


Sergio Moro foi o antecessor de André Mendonça no Ministério da Justiça. O ex-juiz pediu demissão alegando que Bolsonaro o pressionou para trocar a chefia da Polícia Federal e ter acesso a inquéritos sigilosos da Polícia Federal, como aquele que investigava o esquema de lavagem de dinheiro de Flávio Bolsonaro. Bolsonaro precisava escolher um substituto que estivesse 100% alinhado a ele e que fosse capaz de tolerar todas as suas interferências na Polícia Federal para proteger seus filhos. Mendonça foi o nome escolhido para fazer o serviço que Moro não quis fazer. É no mínimo curioso que, diante desse fato, o ex-juiz veja com bons olhos a presença de Mendonça no Supremo.

Perceba que Moro fez questão de ressaltar a “formação cristã” do novo ministro, como se isso fosse relevante para o cargo, e destacou seu empenho no “combate à corrupção”, como se ele não tivesse sido escolhido justamente por defender cegamente o presidente e proteger seu filho acusado de corrupção.

Aos poucos o estado teocrático vai tomando corpo, com a anuência dos democratas que deveriam combatê-lo.

A nomeação de André Mendonça ao STF atende a um antigo sonho da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, a Anajure, uma entidade que tem alto poder de influência em vários setores do governo Bolsonaro. A associação pediu Mendonça na AGU e foi atendida pelo presidente. A entidade vinha reivindicando a presença de Mendonça no STF desde a primeira vaga, quando Kassio Nunes foi escolhido. Agora a Anajure está devidamente contemplada. Os desejos da entidade jurídica-religiosa soam como ordens para Bolsonaro.

O aparelhamento de Bolsonaro no STF faz parte da sua promessa de campanha de acabar com o estado laico e substituí-lo por um estado cristão. O Senado cumpriu na última quarta-feira o papel de cúmplice. Salvo raras exceções, os senadores quase não fizeram perguntas espinhosas para Mendonça e, quando fizeram, aceitaram docilmente as suas respostas “treinadas” e “calculadas”. Após defender caninamente o governo quando chefiava a AGU, o advogado religioso foi premiado com uma vaga no STF, onde obviamente continuará fiel aos interesses do bolsonarismo. Aos poucos o estado teocrático vai tomando corpo, com a anuência dos democratas que deveriam combatê-lo.

A democracia corre risco com a presença de uma pessoa cujo pensamento se assemelha ao de um fundamentalista religioso. O aparelhamento dos tribunais avança e parece que a oposição não entendeu a gravidade disso. Um homem de perfil reacionário e ultrarreligioso poderá ficar 25 anos no STF graças à negligência do atual Senado. O tamanho desse estrago nas instituições é incalculável.

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