Rodrigo Nunes: No caminho para o fim do mundo, a radicalidade é a nossa única saída

Nesta entrevista, o filósofo e autor do recém-lançado “Do transe à vertigem” aborda diagnóstico e ações em um mundo à beira do abismo.

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Foto: Rodrigo Sombra

Sejamos, urgentemente e programaticamente, radicais: o novo livro do filósofo Rodrigo Nunes, “Do transe à vertigem – ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição”, faz um chamado coletivo propondo novas ações frente ao cenário de caos imposto não somente pela extrema direita, mas antes pelo desmonte do mundo como conhecemos.

Um dos intelectuais que mais tem contribuído – dentro e fora da academia – com discussões que mesclam bolsonarismo, política, análises internacionais e cultura pop, o professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a PUC-Rio, conversou comigo (durante duas horas, então ainda ficou muita pérola de fora) sobre nosso liberalismo oco, pobreza, sofrimento, performance e identidade, entre outros assuntos.

Confira a entrevista:

Fabiana Moraes – Um dos termos infelizes que surgiu novamente nos últimos anos é “pobre de direita”. Me chama atenção porque revela um espanto que, na raiz, está atrelado a uma espécie de determinismo (se pobre, tem que ser de esquerda) e mesmo um desconhecimento sobre o próprio país, conservador há muito. Você fala no livro sobre o bolsonarismo ser um fenômeno que percorre diversas classes. Gostaria de lhe ouvir sobre esse assombro em relação ao pobre direitista e se, na sua opinião, se essa adoção bolsonarista interclasses tem matizes específicas a partir de que estratos estamos falando?

Rodrigo Nunes – Começamos por esse último ponto do bolsonarismo como um fenômeno interclasse, que reúne diferentes estratos em torno de algo como um projeto comum; uma aliança de classe, que é algo que também se pode dizer do lulismo, aliás. Poderíamos dizer que o lulismo foi uma aliança de classes que funcionou de certa maneira como a última tentativa de entregar as promessas da Nova República, a última tentativa de entregar as promessas do processo de modernização, entendido como algo que geraria condições de prosperidade para todo mundo, que geraria instituições responsivas, que superaria as relações sociais arcaicas herdadas da sociedade escravocrata.

Os governos do PT foram a última tentativa, a única coisa que o Brasil ainda não tinha tentado até aquele momento; e acho que dá para dizer sem medo de errar que os governos do PT conseguem entregar mais do que qualquer governo até então. Mas não entregam nem de longe tudo o que se esperava, o que gera uma sensação de frustração maior do que aquela gerada pelos donos tradicionais do poder: se nem o PT, que era a única coisa que não tínhamos tentado até hoje, não conseguiu…

Por outro lado, em parte por conta do seu relativo sucesso, há uma crise social e política que se abre porque tem uma parte da sociedade brasileira que se dá conta de algo como “opa, entregar direitos para as pessoas implica perder alguns privilégios”. A classe média tem ameaçado o privilégio da empregada doméstica, o taxista tem ameaçado o privilégio de fazer piadas sobre gays, o marido explorado no emprego e humilhado pela polícia tem ameaçado os privilégios na sua relação com a mulher… Enquanto a economia está bem, as pessoas estão trocando de carro, viajando, há empregos, isso não incomoda tanto. Mas há um ressentimento que se acumula e explode junto com a crise econômica em 2015. São ressentimentos muito diferentes em diferentes estratos da sociedade, mas que produzem um caldo de cultura do qual o bolsonarismo vai se alimentar.

Sobre o “pobre de direita”: na verdade, a esquerda tende a ser extremamente inconsistente nesse ponto. Ora falamos como se a condição social fizesse com que a pessoa tivesse necessariamente que ser de esquerda, ora dizemos coisas como “a população brasileira é naturalmente conservadora”. Essa oscilação é sintoma da frustração e do medo da esquerda diante de algo que não era para ser um enigma, mas é: o fato que as pessoas não necessariamente identificam de maneira correta aqueles que nos parecem ser seus interesses objetivos.

Isso se tornou um enigma porque durante muito tempo a esquerda acreditou num determinismo econômico bastante rígido: os trabalhadores, por conta da posição que ocupam na sociedade, acabariam mais cedo ou mais tarde identificando os interesses objetivos que correspondem a essa posição e, com isso, se juntariam à esquerda que defendia esses interesses. Acontece que, entre o interesse objetivo e a atitude política que as pessoas assumem, existe, por um lado, o modo como as relações sociais molda a subjetividade dessas pessoas – de uma maneira que tende normalmente a facilitar a reprodução dessas relações –; e, por outro lado, a própria política. Ou seja: chocar-se que haja pobres de direita equivale a chocar-se com o fato que existe política, de que as estruturas sociais não determinam as pessoas a concordar automaticamente com aquilo que dizemos, e que, ao contrário, nossa tarefa política é justamente estabelecer diálogo com elas a fim de ajudá-las a identificar seus interesses objetivos da maneira que julgamos correta.

Em 2018, mesmo preso, Lula liderava as pesquisas para presidência. Depois, no auge do antipetismo, indicou um candidato que chegou ao segundo turno e obteve 45 milhões de votos, apesar de ser ainda pouco conhecido nacionalmente. Foi uma eleição ainda com uma enorme abstenção (quase 30 milhões). Agora, Lula mantém uma estabilidade de acima dos 42% na maioria das pesquisas. Mesmo assim, continuamos, academia e imprensa, com as luzes voltadas basicamente para Bolsonaro e o bolsonarismo. É claro que é fundamental estudar e analisar esses ambientes, mas não estamos deixando de entender melhor um outro fenômeno simultâneo que também fala muito sobre o Brasil?

A primeira coisa que essa pergunta permite fazer é estender uma distinção que faço no começo do livro, dizendo que nem todo eleitor de Bolsonaro é bolsonarista, para outra que não faço explicitamente: quando eu falo em “petistas” no livro, não estou falando de eleitores do PT, estou falando das pessoas que, para além do voto no Lula e do PT, têm uma identificação histórica com o partido e constituem sua base histórica. Aquela base que se manteve firme durante os governos petistas, quando muita gente saiu, ou que se afastou após o Mensalão e a Lava Jato, mas voltou a partir de 2015 com a ameaça de impeachment contra Dilma, ou mais tarde com a prisão do Lula. Porque estes ataques, na verdade, serviram para reforçar a adesão ao partido: eu conheço pessoas extremamente críticas aos governos do PT que, no momento em que o Lula se entregou à polícia, se tornaram petistas como jamais haviam sido em toda sua vida. Essa é uma adesão que vai muito além do voto e da lembrança positiva daquilo que os governos Lula e Dilma realizaram.

Do transe à vertigem – Ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição (Ubu Editora, 2022).

Uma coisa que defendo no livro é que, ao contrário do que se costuma pensar, as pessoas não se revoltam porque suas condições se deterioraram para além de algum limite absoluto, mas porque elas pioraram significativamente em comparação com sua situação anterior, a situação em que elas esperavam estar ou a situação em que aqueles em sua vizinhança se encontram. É isso que nos permite entender algo como 2013: as pessoas foram às ruas não porque fosse o pior momento na história do país (não era), mas porque a melhora que elas haviam experimentado nos anos anteriores havia aumentado suas expectativas, e havia áreas em que as coisas estavam começando a regredir e outras em que a vida não havia progredido na mesma proporção (transporte público, direito à cidade, responsividade do sistema político, violência policial).

Com isso em mente, podemos entender esse fenômeno da resiliência do voto petista como o reverso, o outro lado da moeda daquilo que eu proponho no livro que seria o epicentro do bolsonarismo, o que chamo de baixa alta classe média. O que eu quero designar com isso é um segmento de pessoas com um consumo e condições de consumo de classe média, às vezes até classe média alta, mas que está sempre assombrada pelo risco da mobilidade social negativa, da perda de status. E o que acontece com essas pessoas nos governos do PT? Elas não deixaram de ganhar: trocaram de carro, viajaram, se deram bem como a maioria da população. Porém, elas viram quem estava acima dela ficar muito mais rico, e elas viram os mais pobres que elas ficarem menos pobres. E ficando menos pobres, ameaçarem por um lado a renda delas, porque fica mais caro contratar a empregada doméstica, a cabeleireira, a manicure etc., serviços aos quais essas pessoas tinham acesso a um preço muito baixo por conta das desigualdades sociais. E por outro lado, essa ascendência de quem está abaixo deles começa a “morder” os marcadores de distinção social com os quais eles separavam. Justamente quem está assombrado pelo risco de cair precisa muito desses marcadores, tipo a exclusividade de poder ir à Europa.

A famosa queixa de que agora o porteiro vai a Paris…

Exato. Enfim, tem essas pessoas que não deixaram de ganhar, mas sentiram que estavam ganhando menos, porque quem estava acima estava ganhando muito mais e quem estava abaixo estava chegando perto.

Do outro lado, a gente tem a população sobretudo do Nordeste para quem algumas promessas básicas da modernização foram entregues durante os governos petistas.. Eles estavam partindo de um patamar muito mais baixo, onde se tinha uma situação crônica de falta de água e luz elétrica, e aí, de repente, você tem cisternas e luz por toda parte e estava resolvido um problema de séculos, que parecia impossível de resolver.

Mas ficou faltando o terceiro fenômeno que você mencionou, que é o abstencionismo, o crescimento da indiferença em relação à política. Acho que devemos lê-lo junto a esse caldo de cultura anti-sistêmico do qual a extrema direita no mundo inteiro consegue se apropriar na segunda metade da década passada. Algo que começa a fermentar em 2008, quando havia ficado evidente que a economia mundial estava girando no vazio, que o crescimento da década anterior havia sido uma grande bolha especulativa que havia estourado, e que as instituições democráticas agora estavam defendendo apenas os interesses do capital.

E ainda teve antes setembro de 2001, com as torres gêmeas explodindo em Nova York e o crescimento global do “medo do outro”…

Sim, junto com uma explosão da securitização, da vigilância e da gestão através do medo, de um estado de crise permanente. As pessoas sentem que tem alguma coisa de muito errado. Ficou escandalosamente claro para todo mundo que quem causou a crise não foi responsabilizado por ela, pelo contrário, o custo foi transferido para a população. Então, as pessoas sentem que tem um problema sério de representação política, não faz diferença se é esquerda ou direita, está todo mundo no bolso do mercado financeiro internacional.

Isso gera um sentimento anti-sistêmico que se expressa nesses movimentos do início da década passada. Ainda que fossem movimentos muito diversos, muito confusos, Occupy, os indignados na Espanha, o início de Junho de 2013, a Primavera Árabe, etc. eram movimentos demandando mais igualdade econômica, democracia e responsividade. Esses movimentos são reprimidos e também encontram os seus próprios limites internos até o meio da década; poderíamos colocar como marco exatamente julho de 2015, que é o momento da capitulação do Syriza para a Troika. E a partir de então você tem o Brexit, a eleição de Trump, Bolsonaro… Ou seja, esse sentimento anti-sistêmico acaba em parte apropriado pela extrema direita e, em outra parte, se convertendo num aumento do abstencionismo no mundo inteiro, muita gente desiste da política, dizendo “ah isso aí não tem jeito mesmo”.

U.S. President-elect Donald Trump arrives to speak during a USA Thank You Tour event at Giant Center in Hershey, Pennsylvania, U.S., December 15, 2016. REUTERS/Lucas Jackson - RTX2V9HU

Rodrigo Nunes: eleição de Trump é sintoma de como a extrema direita surfou na onda do movimento anti-sistêmico mundial.

Créditos: Reuters/Folhapress

É importante a gente nunca perder de vista quando discutimos a irracionalidade da extrema direita: ora, achar que tem alguma coisa de muito errado no nosso mundo hoje, achar que alguma coisa de muito extrema precisa ser feita para consertar o nosso mundo hoje, é extremamente razoável. A humanidade está, segundo nos informa nossa melhor ciência, caminhando para a extinção.

Sabemos disso há, no mínimo, três décadas, e estamos há três décadas dizendo: “precisamos deixar que o mercado encontre uma solução para isso”. E por três décadas o mercado foi incapaz de fazer isso, continuamos dependentes do petróleo e enchendo a atmosfera de gases de efeito estufa, e nossos políticos seguem falando de soluções de mercado como se essas não tivessem falhado e o tempo não estivesse correndo. O fosso da desigualdade econômica crescendo, nossas instituições se deteriorando, e a maior parte do debate público agindo como se apontar isso fosse extremismo.

Achar que o mundo vai mal é o diagnóstico correto. O que a extrema direita prescreve são soluções falsas, versões fantasiosas para nossos problemas, mas pelo menos ela reconhece que as pessoas têm razão de sentir um mal-estar diante do mundo – e isso é justamente parte do apelo dela.

Na sua opinião, o surgimento do bolsonarismo é tão acachapante e atordoante que nos fez lidar com outro sentimento ainda pouco sublinhado nas disputas políticas, o medo? Notas de repúdio com linguagem pouco direta, recados, não adjetivação de “extrema direita”, uma carta pró-democracia amplamente assinada só no fim do (espero) primeiro governo Bolsonaro. Como você vê esse fenômeno?

Há um argumento da Angela Nagle no livro “Kill All Normies” que poderíamos resumir, de modo um pouco cruel, mas nem tanto, que basicamente afirma que a esquerda é culpada pela radicalização que produz a extrema direita. Porque são as feministas, os LGBTQIA+, os negros, etc., nas redes sociais que vão gerando essa reação do outro lado.

Acho que há três grandes problemas nessa afirmação. O primeiro é explicar o incêndio a partir da fagulha em vez de olhar para o material inflamável: se as pessoas estão se radicalizando, é sobretudo por causa destes motivos maiores que discutimos. Se tudo andasse bem, os mesmos processos e mecanismos que levam milhares à radicalização hoje dificilmente teriam o mesmo efeito.

O segundo é o seguinte. No caso dos EUA, a reversão do Roe versus Wade é, na verdade, um jogo que a direita americana está jogando desde a década de 70. Eles ganharam agora, mas eles começaram a jogar no final da década de 70, esses processos de polarização assimétrica puxados pela direita nos EUA existem desde ali. No caso do Brasil, os pânicos morais e o discurso do anticomunismo começam mais ou menos junto com as administrações petistas, porque naquele momento era um dos poucos jeitos de bater em governos que eram altamente populares

No caso do Brasil, os pânicos morais e o discurso do anticomunismo começam mais ou menos junto com as administrações petistas, porque naquele momento era um dos poucos jeitos de bater em governos que eram altamente populares.”

Por que se antes o medo era o da propriedade ser roubada pelo PT, agora é o pânico é que mudem o gênero do seu filho na escola.

É! E essas táticas funcionam, elas chamam atenção, atraem apoiadores, criam esse clima de urgência de que a extrema direita se alimenta. O caso do MBL é sintomático: ele nasce se diferenciando do resto da direita brasileira por ser liberal na economia e liberal nos costumes. Era a “direita transante”, toda aquela conversa do fundador, Pedro Ferreira, ex-DJ do Bonde do Rolê. Mas a partir do caso da exposição Queer Museum eles aderem a esses pânicos morais porque eles veem que aquilo dá certo.

Então, esse argumento da Angela Nagle esquece que esse jogo já está rolando numa escala temporal muito mais longa. No caso dos EUA, a gente pensa no “Tea Party”, aqui no Brasil vale lembrar que o tal “kit gay” é de 2010, quando essa explosão do ativismo feminista, do ativismo LGBTQIA +, ainda era bastante incipiente. E o outro problema é que, ao dizer “na minha pesquisa, os meus informantes dizem que se sentiram afrontados pelos excessos desses movimentos”, ela esquece que o limiar daquilo que as pessoas consideram afrontoso varia muito. Tem pessoas para quem um negro tomar o elevador social, um casal gay andar de mãos dadas já é um “excesso”, uma “afronta”.

Por outro lado, há um grão de verdade no que ela diz. Podemos ver isso aqui no Brasil: há uma escalada dos pânicos morais e do racismo explícito na direita, e essa escalada começa a ser espelhada do outro lado, com feministas, LGBTQIA +, negros, indígenas etc. subindo o tom também para responder. E isso conduz a um processo – e potencial armadilha – que eu chamo no livro de “radicalização identitária”. É ela que abre espaço para um uso bastante confortável do discurso sobre a chamada “polarização política”, ao qual eu dedico um capítulo inteiro do livro, que lava suas mãos diante do crescimento da extrema direita dizendo “pois é, o problema é que tanto esquerda quanto direita são muito radicais, são extremos que se equivalem”.

Quando eu falo em radicalização identitária no livro, na verdade não estou me referindo aos movimentos ditos “identitários”. Estou falando de uma prática política em que “ser radical” se confunde com a performance da própria identidade, isto é, com agir como quem diz “eles vão ter que nos engolir”. E esse é um caminho no qual toda a esquerda entra a partir de 2014.

Essa conversa de que os dois lados estão se radicalizando é uma miragem criada pelo fato de que a esquerda está radicalizando a sua identidade, que ela se afirma com cada vez mais força e ênfase, mas não o seu programa. Pelo contrário: a esquerda está dizendo “tem que ir para a rua de camisa vermelha sim”, mas os seus partidos estão caminhando cada vez mais para o centro.

E por que isso que eu chamo de radicalização identitária seria uma armadilha? A resposta tem a ver com a primeira pergunta que você me fez. Primeiro, a opção por afirmar a própria identidade contra a identidade do outro supõe um abandono do trabalho político do convencimento, da formação de interesses. Se decidimos que esse trabalho tornou-se impossível, só resta o choque entre identidades: se eu não posso persuadir o outro (porque ele é o que é, sem chance de mudar), o que me resta fazer é afrontá-lo e confrontá-lo.

A radicalização identitária frequentemente impede diálogos que deveriam e poderiam acontecer. Se eu decido que o outro é um inimigo e só me resta afrontá-lo com minha alteridade, a tendência é eu me confirmar como inimigo aos olhos dele, empurrando-o ainda mais na direção contrária a mim. Isso não muda nada em relação a quem já era meu inimigo, mas e aqueles que estavam no meio do caminho, que talvez estivessem em disputa?

Não estou defendendo uma respectability politics, que todo mundo tem de ser bonzinho e bem comportado. Mas você tem que saber o que funciona com qual público, e no interior do ecossistema da esquerda é preciso haver gente capaz de dialogar com os mais diversos públicos. Há momentos em que é preciso decidir que o conteúdo da mensagem é mais importante que esta ou aquela maneira de apresentá-la. Nós vamos brigar pelo direito de afirmar nossas identidades neste mundo, ou vamos lutar para criar um mundo onde essas identidades não precisem lutar para se afirmar? Se escolhemos a segunda opção, então vamos precisar trazer gente diferente de nós para o nosso lado, e para isso a capacidade de dialogar apesar das diferenças é essencial.

Mas tem um ponto importante para a gente também iluminar aí: o MBL também não seria um movimento identitário? Fico pensando que a gente atribui a ideia de “identidade” às esquerdas e é preciso incluir a direita dentro dessa discussão.

No sentido em que estou usando a palavra identitário, eu incluiria a esquerda anti-identitária como identitária, porque nela também o que está em jogo é a afirmação de uma identidade posta acima da capacidade de diálogo e ação política. Inclusive é perfeitamente possível que uma pessoa seja uma militante feminista, ou uma militante transgênera, ou uma militante negra, indígena etc., e que não seja identitária neste sentido. Há zilhões de exemplos disso.

Há um discurso sobre as chamadas guerras culturais e a polarização política que descreve esses processos como se fossem uma coisa que surgissem do nada. Mas quando começamos a pensar em escalas temporais mais longas, uma das coisas que eu me proponho a fazer no livro, percebemos que, se há um momento que se pode identificar como origem de muito daquilo que a gente viu da década de 1980 para cá, é a chamada estratégia sulista do Partido Republicano americano a partir da década de 1960.

O domínio do Partido Republicano sobre o sul dos EUA, que hoje nos parece quase um dado da natureza, surge na verdade nessa época, quando o Partido Democrata, que fora historicamente o partido sulista, abraça o movimento dos direitos civis. E essa é uma luta pela inclusão do “particular” no “universal”: o que os negros dizem é, “olha, nós também somos cidadãos americanos, nós devemos ser tratados como cidadãos americanos em pé de igualdade aos cidadãos americanos brancos.” Neste momento em que o “particular” negro pede entrada no “universal” cidadão americano, o branco, que até então se confundia com o universal, se descobre uma identidade particular. E o Partido Republicano percebe que se abriu uma oportunidade política única para eles, porque agora há um mar de brancos no sul dos EUA profundamente ressentidos com esse progresso dos cidadãos negros.

Rodrigo Nunes: MBL aderiu ao pânico moral quando percebeu que a estratégia rendia frutos.

Créditos: Bruno Poletti (F)/Folhapress

A partir daí você entende muito o que acontece depois no governo Reagan, com o Trump etc. Muito do que acontece com a extrema direita hoje é nesses mesmos termos, você tem um grupo “particular” que obtém ganhos, aquele grupo que representava o universal se vê deixado para trás e, de repente, ele vira uma identidade particular também. O MBL é o jovem, branco, urbano, “descolado” que, de repente, se viu como uma identidade particular diante do fato de que agora eu chego na mulher na festinha e ela é feminista…

Como pensar, após a vitória de Bolsonaro, em boa parte embalada pela fé em Paulo Guedes, o liberalismo brasileiro?

Dá para responder sobre o liberalismo brasileiro o mesmo que Gandhi disse quando perguntado o que pensava da civilização ocidental: seria uma ótima ideia. No Brasil, a elite urbana esclarecida nunca se distinguiu o suficiente da oligarquia rural, nem do ponto de vista sociológico, nem do ponto de vista da formação de interesses, para que houvesse uma oposição de fato entre liberalismo e conservadorismo. Assim, as críticas e ideais liberais quase sempre funcionaram como enfeites de que se podia facilmente abrir mão na hora de apoiar golpes, viradas de mesa, reformas regressivas. Os liberais brasileiros podem se esconder o quanto quiserem por trás da teoria liberal, mas não adianta: o histórico do “liberalismo realmente existente” no Brasil é péssimo.

No mundo todo, uma resposta à crise de legitimidade do sistema global aberta pelo crash de 2008 foi um enrijecimento das ideias neoliberais, que se transformaram ainda mais num dogma cego, completamente imune às evidências empíricas, incapaz de produzir qualquer pensamento novo diante de um cenário altamente modificado. O neoliberalismo virou uma máquina em que, qualquer que seja o input, o output sempre vai ser “cortar gastos sociais”, “cortar impostos dos mais ricos”, “menos proteção laboral”. Não importa se o receituário é aplicado e não funciona, se ele não gera crescimento, se ele está criando um mal-estar social que contribui para o crescimento da extrema direita.

Além disso, a defesa incondicional dos direitos individuais tem se tornado cada vez mais anti-social. Num mundo em que uns poucos podem cada vez mais, e os muitos são cada vez mais coagidos, dizer que você não pode impor nenhum limite à liberdade de uns para fazer coisas que impactam a vida de outros beira a psicopatia. É defender a lei da selva e nada mais.

“Num mundo em que uns poucos podem cada vez mais, e os muitos são cada vez mais coagidos, dizer que você não pode impor nenhum limite à liberdade de uns para fazer coisas que impactam a vida de outros beira a psicopatia”.

A tão estudada ficcionalização da vida nunca esteve tão disponível através de recursos vários, do uso comum de filtros nas redes sociais, as cirurgias digitais nos rostos, o barateamento de procedimentos como botox etc. Simultaneamente, pipocam números de pessoas com fome ou em insegurança alimentar, empregos precarizados e o sofrimento. Como pensar no resultado da forja destas realidades imbricadas?

Dá para pensar em três maneiras de articular essas duas coisas, o sofrimento e a ficcionalização da vida. A primeira seria como fuga. Uma das coisas que sugiro na minha análise sobre negacionismo no livro, é que, por mais que as narrativas da extrema direita sejam extremamente sombrias, macabras, elas ainda são melhores que os problemas reais que elas teriam de enfrentar se não estivessem dando ouvidos a elas. Que tudo esteja sendo governado por um complô secreto de bilionários pedófilos que querem instituir um governo global e tirar os seus direitos – algo assustador, um roteiro de filme do James Bond (ou talvez mais do Austin Powers) – ainda é melhor que parar para pensar que podemos estar extintos dentro de alguns séculos.

Você não está negando que as coisas estão mal, mas você está oferecendo uma versão mais tratável desses problemas. Então se oferece uma versão ficcional mais simples de um problema real, mas infinitamente mais complicado e, portanto, também mais causador de sofrimento. Porque o sofrimento vem de saber que “olha, talvez isso não tenha solução, talvez a gente simplesmente seja incapaz de resolver isso”.

Uma segunda maneira de relacionar as duas coisas seria essa ficcionalização que serve como um instrumento de produção de identidade. Num mundo em que está todo mundo sofrendo e desorientado, como uma luta de todos contra todos, esses suplementos ficcionais nos ajudam, eles oferecem pontos focais em torno dos quais as pessoas podem construir uma identidade comum e uma comunidade no entorno dessa identidade. O fenômeno da fandom é isso.

Outra relação que me ocorre é ver como uma oportunidade. Todos esses meios de auto-ficcionalização num mundo financeirizado são uma maneira de atrair investimento. Oportunidades econômicas, em sentido amplo, mas também oportunidades mais imediatas de você sair da condição de sofrimento, porque às vezes você não está interessado em ter ganhos materiais, às vezes você está buscando aquele consolo psicológico do like.

Nos últimos anos, tenho pensado bastante sobre como esse sofrimento intensificado pela pandemia – a perda de empregos, o achatamento dos mais pobres, aumento da morte de pessoas pretas – pode potencialmente nos modificar. Minha impressão é que esse sofrer se tornou mais insustentável, também porque mais “democratizado” e mais visível (nos sinais de trânsito, nas redes sociais). Como você vê essa questão? É um excesso de otimismo da minha parte?

Diante de uma situação que parece se deteriorar a cada dia, existe uma tentação de imaginar que há um limite do qual não se pode passar, de que uma hora a realidade irá se impor, que chegaremos ao fundo do poço. Mas uma coisa que a pandemia nos ensinou foi a elasticidade da negação. Não só o viés de confirmação de nossas crenças nos permite ignorar uma massa acachapante de evidências empíricas, como é perfeitamente possível que, diante do sofrimento que a visibilidade do sofrimento alheio nos causa, nós decidamos dobrar a aposta.

Lembro de um caso no Rio, em que um homem que tinha perdido um familiar para o covid fincou cruzes na areia da praia e um aposentado bolsonarista atacou as cruzes. Para ele, a lembrança do custo humano de sua escolha política era uma agressão a ser eliminada. Tendo dito isso, estamos atualmente vendo no mundo inteiro uma disparada dos indicadores de custo de vida, particularmente alimentos e combustíveis, como não víamos há algum tempo – mais especificamente, desde antes do início da Primavera Árabe. Ou seja, os próximos anos podem ser bem interessantes.

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