Entidade acusa Jota de censurar artigo crítico à indústria farmacêutica

Site jurídico publicou uma série de artigos patrocinados por farmacêuticas defendendo a extensão de patentes, mas apagou uma crítica a eles.

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Quatro pesquisadores da Universidade Federal do Paraná e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro acusam o site Jota, especializado em jornalismo jurídico, de apagar sem explicações um artigo crítico à indústria farmacêutica. O texto “Extensão do prazo de patentes no Brasil” havia sido aprovado pelos editores do site no dia 9 e divulgado em 13 de setembro. Três dias depois, ele foi removido.

O artigo, assinado por Pedro de Perdigão Lana, Karin Grau-Kuntz e Marcos Wachowicz, da UFPR, além de Alan Rossi Silva, da Uerj, era uma resposta a um publieditorial publicado poucas semanas antes no mesmo site pela Interfarma, organização que faz lobby para dezenas de farmacêuticas estrangeiras, como Roche, Sanofi, Takeda e GSK. Wachowicz é coordenador do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial, o Gedai, uma das maiores referências acadêmicas em propriedade intelectual do país.

Publieditorial é o jargão usado para definir conteúdos publicitários disfarçados de matérias jornalísticas. Esse tipo de publicação patrocinada para influenciar a opinião pública é uma prática comum da indústria farmacêutica, como já mostramos no Intercept.

A remoção do texto – que o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual chamou de censura – acontece em meio a uma guerra travada pela indústria farmacêutica internacional para tentar aumentar o prazo de validade de patentes de medicamentos no Brasil. Essa extensão foi questionada durante a pandemia de covid-19, já que a quebra de patentes poderia baratear e facilitar o acesso a vacinas e medicamentos.

Depois da derrota, o contra-ataque

No ano passado, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5529, a ADI 5529/DF, que pedia o fim da extensão de patentes. Antes, o titular tinha direito a um prazo mínimo de 10 anos depois da concessão da patente pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial, o Inpi. Então, na prática, em casos onde havia uma longa demora do exame, o prazo da patente ficava mais longo do que deveria – em alguns casos, o monopólio chegava a quase 30 anos, muito além dos 20 anos definidos pelas regras internacionais.

Associações como o grupo FarmaBrasil, que representa a indústria farmacêutica nacional, e Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos, a ProGenéricos, eram contrárias à prorrogação das patentes. Já a indústria farmacêutica internacional era favorável.

Na época do julgamento, a Interfarma e o escritório de advocacia Licks Attorneys promoveram uma ofensiva e inundaram jornais como Folha de S.Paulo e Valor Econômico com publieditoriais que espalhavam pânico sobre a possível aprovação da ADI. “Alteração em patentes pode prejudicar acesso a novos medicamentos no país” era um dos títulos das propagandas disfarçadas de reportagens jornalísticas, que renderam R$ 1,5 milhão aos veículos participantes, como mostramos na época.

No julgamento, o relator da ADI, ministro Dias Toffoli, chegou a criticar “as atividades que estão fazendo, via imprensa, de maneira extremamente desleal, incorreta e estúpida”, mencionando o escritório de advocacia que pagou os informes publicitários. Segundo o advogado Otto Licks, que pediu desculpas a Toffoli, os conteúdos haviam sido produzidos em parceria com os veículos. O STF acabou aprovando a ADI, limitando o prazo de validade e impondo uma dura derrota para a indústria farmacêutica.

Ministro Dias Toffoli criticou duramente o uso de matérias pagas para influenciar o julgamento.

Mas os lobistas não desistiram. Neste ano, a indústria tenta aprovar um projeto de lei que prevê prazos para análises de pedidos de patentes e compensações em caso de elas demorarem a sair.

O PL 2056/22 foi apresentado em agosto deste ano pelo deputado Alexis Fonteyne, do Novo. A iniciativa no Congresso foi sucedida por uma série de artigos publicados no Jota assinados pela Interfarma. O primeiro, intitulado “Demora do INPI para analisar patentes pode ensejar ação para extensão de prazo”, emula uma reportagem do site tanto na forma quanto no conteúdo, apesar do aviso de que se trata de um conteúdo patrocinado.

O Jota costuma publicar conteúdos patrocinados por “organizações e empresas que querem estimular o bom debate através de cobertura jornalística imparcial e de qualidade”. Segundo o Jota, no entanto, esses patrocinadores “não interferem no conteúdo produzido pela redação”.

Publicado em 17 de agosto, o artigo mostra opiniões de advogados que afirmam que a demora do Instituto Nacional de Proteção Industrial nas análises de pedidos de patentes permitiria que seus titulares pedissem à justiça uma compensação – não necessariamente em dinheiro, mas em mais prazo, por exemplo. O texto também explica que o novo projeto de lei apoiado pela indústria prevê um prazo de até 30 dias, prorrogáveis por mais 30, para os processos de patente no Inpi – e compensação se esse prazo for descumprido pelo órgão. Ou seja: basicamente tentaria reverter a decisão do STF, garantindo que o prazo de validade da patente seja estendido para além do limite legal.

Prática ‘reprovável’

Pouco mais de duas semanas depois, os pesquisadores especialistas em propriedade intelectual enviaram um artigo em resposta para o Jota. O veículo costuma publicar artigos opinativos de juristas e pesquisadores, em profícuas discussões jurídicas.

No texto-resposta, os pesquisadores falam sobre as bases do sistema de patentes. O privilégio da patente garante ao inventor o direito de explorar economicamente sua invenção – sem concorrência, é possível, inclusive, definir preços sem pressão dos competidores. Por isso, interessa ao inventor prorrogar esse prazo e, aos concorrentes, limitá-lo – e o prazo estabelecido no Brasil ficou definido como 20 anos, a fim de equilibrar esses dois polos.

Os anos são contados a partir da data do pedido de patente – depois, o pedido ainda vai para análise do Inpi. Ou seja: quanto maior a demora nessa análise, menos tempo o dono terá para explorar economicamente sua patente com exclusividade. O que ocorre, no entanto, é que normalmente os produtos são lançados antes mesmo da concessão da patente – o que permite que gerem lucros – e já há mecanismos de indenização que desestimulam sua exploração comercial pela concorrência nesse período. Por isso, os autores argumentam que para o pedido de compensação pela demora é preciso determinar o tipo de prejuízo causado. “Em nenhuma das ações em questão houve demonstração de dano”, eles afirmam. Os autores também questionam a afirmação de que o prejuízo pela demora seria de “milhões”.


“É natural que as partes interessadas procurem defender suas posições”, diz o artigo. “O espaço da defesa de tais interesses, porém, é condicionado ao respeito à ordem jurídica. Na falta de respaldo jurídico às ações em questão, suas proposições revelam não apenas pouco caso à decisão do STF na ADI 5529, mas ainda o mau uso do sistema de patente e do direito de peticionar”, argumentam.

Foram exatamente três dias no ar e uma remoção sem explicação, segundo os autores. A pesquisadora Karin Kuntz chegou a mandar quatro e-mails ao Jota e não obteve resposta. “Não entendemos os motivos da retirada do texto, prerrogativa exclusiva dos autores, uma vez que foi publicado normalmente, sem qualquer restrição ou comentário em sentido contrário”, escreveram os pesquisadores. “Esquece o periódico que, para além de autores de diversos artigos no site, somos também leitores e assinantes, embora nossa contribuição financeira seja muito menor que a da Interfarma”.

“Não acho que foi exatamente censura no sentido estrito do conceito, mas uma prática jornalística muito ruim contra a liberdade de informação e o debate de ideias que vai contra as próprias regras éticas do Jota”, disse o pesquisador Pedro Lana, um dos autores do artigo, ao Intercept. “Digo isso no conceito estrito de censura, porque não foi algo vindo do poder público e nem impedia a republicação em outros lugares. O que não significa que não achei o ato reprovável”.

O Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, o GTPI, publicou uma nota de repúdio sobre a censura. “É lamentável que um jornal prestigiado, que tem uma especialização no mundo jurídico, e que, portanto, deveria ter como premissa a valorização do contraditório e a exposição de todas as posições, tome uma postura arbitrária, censurando um artigo que havia sido devidamente aprovado em todos os procedimentos editoriais e contribua para que apenas a voz de quem detém o poder econômico domine a pauta do debate público”, disse o grupo.

Depois da remoção, o Jota publicou mais um texto assinado pela Interfarma. Intitulado “Propriedade intelectual avança no país, mas precisa se tornar política de Estado”, o artigo elogia ações tomadas a favor das patentes sob o governo Bolsonaro – entre elas, a criação do Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual, do Ministério da Economia, e da Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual.

A associação também patrocinou em agosto uma sabatina da Folha de S.Paulo com representantes dos candidatos de Lula, Ciro Gomes e Simone Tebet para discutir o tema. “Todos ressaltaram a necessidade de tornar o Brasil um polo interessante para investimentos na área da saúde, reconhecendo a importância dos medicamentos inovadores para a população e para a economia. Além disso, eles disseram que é preciso garantir a segurança jurídica para investidores por meio de um forte sistema de propriedade intelectual e do desenvolvimento nacional de tecnologias para fortalecer o complexo industrial da saúde no país”, garantiu a associação, no texto publicado no Jota.

O veículo republicou o texto dos pesquisadores nesta quinta-feira, dia 22. Segundo o veículo, o artigo havia sido “retirado do ar para uma avaliação editorial”. “Após a avaliação, o artigo foi republicado”, explicou o Jota.

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