‘Socialmente responsáveis’ e golpistas: como se divide nosso agronegócio

Cartilha mapeia quatro grupos do agro brasileiro, setor majoritariamente contrário a Lula, que estará na COP27.

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24/04/2019 Pronunciamento do Presidente da República

Ilustração: The Intercept Brasil; Getty Images

Você viu: foi só anunciar a histórica votação de Lula – que venceu a eleição apesar de uma gorda e rica estrutura de compra de votos e uso da máquina pública – que tratores e caminhões passaram a bloquear diversas estradas do país. Em nome do “povo”, prejudicaram o próprio povo: desabastecimento, prejuízos em supermercados, hospitais, cargas perdidas, pessoas sem conseguir atendimento médico etc. Os caminhoneiros, eles de novo, tornaram-se para muita gente os protagonistas do show de golpismo.

Mas, sem colocar a cara no sol, na estrada e nas redes, havia na baderna uma substancial participação de empresários do agronegócio, setor majoritariamente bolsonarista. Eles, somados a militares da reserva, já vinham articulando há semanas o impedimento do tráfego nas rodovias do país caso fossem derrotados. A Agência Pública mostrou aqui.

Logo, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transporte e Logística, a CNTTL, veio a público e condenou os bloqueios. Em nota, sublinhou que caminhoneiros autônomos e celetistas são também vítimas dessas ações apoiadas por representantes do agro. “Estão divulgando a falsa alegação de que essa manifestação é dos caminhoneiros. Importante deixar claro que esse movimento não é organizado pelos trabalhadores”, pontuaram.

O observatório De Olho nos Ruralistas produziu um vídeo sobre a presença de empresas por trás das manifestações golpistas, chamando atenção para a grande quantidade de tratores nas estradas, e não apenas de caminhões. Os tratores, estrelas de primeira hora do escândalo do Orçamento Secreto, foram vistos antes ocupando Brasília em atos passados e com o mesmo teor golpista.

O alerta vermelho para empresários do setor, mirando antes de tudo o próprio bolso, e não a pátria, tem uma razão simples: a chegada de Lula pode representar, antes de tudo, uma mudança na própria estrutura institucionalizada que o agronegócio mantém, seja no Congresso, seja no lobby de um setor com enorme força para pautar a agenda política do país. Não à toa, investiram pesadamente pela continuidade do presidente derrotado: enquanto as doações de pessoas físicas para o presidente eleito Lula ficaram em R$ 1,4 milhão, a campanha de Bolsonaro informou à Justiça Eleitoral ter recebido R$ 90 milhões, 70 vezes mais. Deste montante, segundo mostra o Congresso em Foco, R$ 22,3 milhões vieram de apenas 50 nomes, que transferiram de R$ 130 mil a R$ 3 milhões ao mandatário. O agronegócio é a principal atividade econômica de pelo menos 33 deles.

Para entender melhor quem são estas empresas (e precisamos ficar muito atentas a todas aquelas que, em nome de interesses próprios, pedem “intervenção federal”), o De Olho nos Ruralistas e a ONG Fase lançaram recentemente uma pedagógica cartilha na qual o agro é dividido em quatro grupos: pragmático-reformista, pragmático-ideológico, foco temático e negacionista-ideológico. O estudo “O agro não é verde – como o agronegócio se articula para parecer sustentável” refuta, de saída, o discurso do agro brasileiro ser “o mais sustentável do mundo”, expediente que fortaleceu o agronegócio brasileiro ao conectá-lo a uma urgente agenda verde mundial.

Na publicação, são mapeadas as entidades que, apesar de um ou outro tensionamento entre si, atuaram muitas vezes no próprio vácuo deixado pela desastrosa atuação da diplomacia brasileira, como bem analisou o professor e pesquisador Marcos Pedlowski. “Reagindo à crescente demanda dos mercados internacionais, as principais associações representativas do setor agropecuário passaram a interferir diretamente nas ações do Estado brasileiro, promovendo uma agenda legalista e ideológica que ignora o desmonte socioambiental vivido nos últimos quatro anos”, escreveu.

Um exemplo do tratoraço de grana e poder: a Frente Parlamentar da Agropecuária, a FPA, com a qual os nichos citados acima possuem diálogo, reelegeu 57% dos seus membros na Câmara dos Deputados. É com este time que Lula vai precisar negociar. No governo Bolsonaro, a sigla apresentou diversos projetos de lei para flexibilização de regras ambientais e propostas que beneficiam o setor. A liberação para o uso de centenas de agrotóxicos proibidos em diversos países é um exemplo.

Aliás, nunca comemos tanto veneno: a organização internacional Human Rights Watch avalia que nós, no Brasil, consumimos em média 7,5 kg de defensivos agrícolas por habitante a cada ano. Para se contrapor ao derrame de veneno, o senador petista Jaques Wagner, presidente da Comissão de Meio Ambiente, defende um marco regulatório para o uso de bioinsumos (organismos vivos como bactérias, insetos ou plantas usados para fertilização ou no controle de pragas e doenças) no agronegócio. Em junho deste ano, ele conversou com representantes da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, a CNA, da Associação Brasileira dos Produtores de Soja, a Aprosoja, do Ministério da Agricultura e da Confederação Nacional da Indústria, a CNI.

A CNA e a Aprosoja constam na cartilha “O agro não é verde”, a primeira dentro do grupo pragmático-ideológico, a segunda no grupo negacionista-ideológico. Apesar das diferenças apontadas pelo time do De Olho nos Ruralistas e Fase, ambas estavam unidas em um texto que dava “total apoio” ao ex-ministro Ricardo Salles, então à frente da pasta do Meio Ambiente e chamuscado pelo vazamento do “passar a boiada”. Uma força específica que dá liga a esses empresários é o Instituto Pensar Agro, o IPA, braço logístico da Frente Parlamentar e que congrega 48 associações do agronegócio, formadas pelas principais multinacionais do setor.

União da Indústria de Cana-de-Açúcar (UNICA) e Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA).

No gráfico, as entidades que compõem os quatro grupos analisados.

Gráfico: De Olho nos Ruralistas

Segundo Bruno Bassi, do De Olho nos Ruralistas, e Maureen Santos, da Fase, a pesquisa e a análise foram realizadas em diversos meios, como páginas institucionais, notas de posicionamento, releases, publicações, campanhas publicitárias, redes sociais, arquivos de jornais e revistas. Além disso, também foram realizadas entrevistas com dirigentes de 49 associações do agro. Treze organizações com atuação mais ativa nas seis últimas edições da Conferência das Partes de clima – da COP22 (Marrakesh, 2016) à COP26 (Glasgow, 2021) – foram selecionadas. Disputas por recursos e financiamento e estratégias narrativas para mostrar boa figura em relação a políticas climáticas, alianças com ONGs ambientalistas e inserções midiáticas foram as questões levantadas.

Perguntei a Maureen quem são as empresas hoje mais alinhadas ao extremismo de direita do governo Bolsonaro – diversas delas envolvidas em casos de assédio eleitoral – e por quais as razões. Estão lá, é claro, a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes, a Abiec, e a Aprosoja. Por fora, no mesmo espectro, estão empresários como Luiz Antônio Nabhan Garcia, ex-presidente da União Democrática Ruralista, a UDR, atual secretário de Assuntos Fundiários e cotado para assumir uma futura pasta nascida da fusão dos ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente caso Bolsonaro fosse eleito. “Estão por trás de vários projetos de lei que pedem por questões como, por exemplo, a maior flexibilização de leis e a liberação da grilagem.

Mas a turma da cana-de-açúcar e da produção de proteína animal [estas no grupo foco temático, teoricamente mais distanciado] também é próxima do governo Bolsonaro e estava na última COP. A primeira tem bastante interesse na questão do etanol, descarbonização”, diz ela. Maureen acredita que o retorno de Lula, que segue para a COP27 no dia 14, pode reabilitar projetos como o Plano de Ação para Prevenção e Controle dos Desmatamento e das Queimadas no Cerrado, o PPC Cerrado, além de rever decretos que flexibilizaram enormemente as fiscalizações ambientais.

Bruno aponta para o fato de o agro ter uma ampla participação político-institucional do Brasil há muito, seja na eleição de representantes diretos do latifúndio quanto em relação a políticos que recebem doações de campanha desses atores econômicos (como vimos na questão de Bolsonaro). “Hoje, por exemplo, há as doações milionárias da família Ometto, dona da Cosan. Até 2014, antes do fim do financiamento privado de campanha, havia o caso dos frigoríficos JBS, Marfrig e BRF.”

Rubens Ometto, presidente do Conselho de Administração da Cosan (holding com negócios nas áreas de açúcar, álcool, energia, lubrificantes e logística), foi um dos maiores doadores da eleição de 2022: segundo o TSE, ele despejou R$ 8,9 milhões para 13 partidos distintos. O Republicanos foi a legenda com maior participação, R$ 3,4 milhões.

“A relação do agronegócio com a política está na origem da formação social brasileira. É algo que aparece mais fortemente no final dos anos 2000, mas que efetivamente vem desde os primórdios do Brasil. É um formato que mistura política e polícia, é um modelo econômico. Não é à toa que vários partidos têm como base esse ruralismo, ainda que eles mudem de nome”, diz Maureen Santos.

Mudar de nome e vestir-se com roupas aparentemente novas é uma estratégia acompanhada pelas empresas que, a despeito de financiarem bloqueios, querem aparecer como ambientalmente responsáveis para o setor econômico. Isso vai se dar principalmente, diz Bruno, nos últimos seis anos, a partir da aprovação do Acordo de Paris e de uma maior demanda de compradores e financiadores internacionais para que fornecedores atendam metas de controle de desmatamento e emissões. “É um processo articulado à reestruturação do capitalismo global pós-crise de 2008. A partir dele, o agronegócio passa a cooptar temas ambientais, disputando de forma mais intensa o campo narrativo, estabelecendo, em alguns casos, pontes com ONGs ambientalistas e, em outros, reforçando a defesa ideológica e ufanista do setor como ‘protetor do meio ambiente’ e ‘agropecuária mais sustentável do mundo'”.

Essas verdadeiras criações se dão no momento de desmonte do Código Florestal e de outras leis ambientais pelo Congresso e Poder Executivo a partir do golpe de 2016, quando, diz o pesquisador, o agronegócio amplia sua participação direta no governo federal. “É daí que surge essa ideia, amplamente difundida nos meios de comunicação, de um agro verde. Essa construção se dá com investimentos massivos em marketing (vide a campanha “O agro é pop) e assessoria, que consolidaram a visão hegemônica de que o agronegócio sustentaria o país de forma ambientalmente correta e que toda e qualquer crítica seria fruto do interesse comercial de outras potências.”

Com o peso de capitanear um giro na atual política ambiental do país, da qual o destrutivo ex-ministro Ricardo Salles é símbolo maior, Lula terá um enorme desafio em negociar com um setor que o queria distante do poder. Além disso, também tensionar a própria ideia de um “agro verde” responsável por manter a economia nacional.

Maureen chama atenção para a difusão desse mantra pelos veículos de imprensa também financiados pelo agronegócio através de anúncios. “Nesse debate não se coloca tudo o que o agro provoca do ponto de vista de uso de recurso, ele muitas vezes não paga pela energia que consome, pela água, pela destruição do solo, as contaminações dos lençóis freáticos, dos rios. Também existem as dívidas que contrai com o estado e, ao mesmo tempo, tem subsídios diretos do governo. Se a gente retira tudo isso e começa a cobrar, vai perceber que não é o setor que mantém efetivamente a balança comercial. Existe um gasto muito maior do que a contribuição”, diz a cientista política.

Ela chama atenção para outras questões que reverberam a partir dos modelos adotados pelo agro brasileiro, como o aumento da desigualdade, os conflitos fundiários e, claro, o impacto socioambiental. “Aí a gente ia perceber que não são tão ‘pop’ assim. Mas isso não entra com força no debate público, nem na mídia”. Bruno Sassi completa: “O que temos são ‘ilhas de sucesso’ do agronegócio, amplamente difundidas pela imprensa e pelo marketing comercial, porém cercadas por um mar de pobreza e desigualdade. Não há como um modelo desses ser sustentável ou ambientalmente correto.”

Agora, é aguardar o início de uma política de reconstrução que vai se dar, e não apenas simbolicamente, com a participação de Lula na próxima COP. É preciso dar especial atenção para as verdadeiras bancadas do agro bolsonarista que também estarão no evento – e precisando lidar, sejam “pragmáticas” ou “ideológicas” – com um chefe do Executivo que tentaram, colocando muita grana em campanha e caminhão na rua, ver bem longe do Palácio do Planalto.

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