Essa gente ‘que se acha’ desafia o poder branco e rico

Num país que destruiu a autoestima da maioria da população, todas as pessoas periféricas que não repetem ‘sim, senhor’ estão reconquistando suas humanidades.

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Ilustração: Nicholas Steinmetz para o Intercept Brasil

“Tu se acha”. Quando escreveu o breve comentário no perfil do artista Maxwell Alexandre, a escultora Natalia Gerschcovich desencadeou, sem saber, um processo público bastante pedagógico sobre raça, ego, fetiche e representação. A frase foi inserida em uma das postagens de Maxwell no Instagram, quando ele determinou que o Instituto Inhotim retirasse uma obra sua da exposição Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro.

Não é dessa questão que este texto trata (se quiser saber mais, leia a respeito aqui ou no perfil do artista), mas do terremoto social causado quando uma pessoa preta, publicamente e sem pudor, “se acha”. Mais ainda: sobre a insistência branca em trazer prioritariamente representações que exibem pretos, indígenas, pobres, nordestinos, etc. em sofrimento e vulnerabilidade, estratégia de poder e colonização muitas vezes apresentada como uma heróica “denúncia”.

Ao entrar no perfil da escultora que o criticava negativamente, Maxwell se deparou com trabalhos nos quais a artista, por exemplo, esculpe meninos negros em situação de rua. Há também imagens dessas crianças reproduzidas em pratos. Em uma escultura particularmente medonha, um garoto aponta uma arma para a própria cabeça. Em outras, vemos meninos muito magros dormindo pelas ruas, em posição fetal. A maioria está sem camisa, descalça. A série foi batizada como “Crianças invisíveis”.

Sim, você já viu bastante esses meninos pelas ruas, e a artista argentina, que vive no Rio, não está reproduzindo uma realidade paralela, um mundo não tangível. Em um país que há muito figura entre aqueles com maior índice de desigualdade social, crianças violadas e sem proteção não são, infelizmente, novidade. No entanto, o que a escolha da escultora revela (e é importante dizer que esse movimento não é individual, mas coletivo e compartilhado no campo das artes, da mídia e no imaginário social) é a preferência em iluminar – e se capitalizar – com a condição de sofrimento de gente vulnerável.

Afinal, o que crianças pretas e pobres fazem quando não estão sujas, descalças, fora da escola, famintas? O que homens negros pobres, outro exemplo, fazem quando não estão sendo presos ou assassinados? Aliás, quando eu escrevo “homens negros”, que imagens vêm imediatamente à sua cabeça? Tenho quase certeza que não são representações de felicidade, lazer, sucesso. Não são imagens de homens pretos vivos, orgulhosos e amando – inclusive, a si mesmos.

Em “Casa de Alvenaria (volume 2: Santana)”, a escritora Carolina Maria de Jesus expõe explicitamente essas violentas operações de reiteração da condição de sofrimento. Ela conta como muitos jornalistas pediam que ela, já morando em um sobrado no bairro de Santana, em São Paulo, voltasse para a Favela do Canindé, da qual havia saído, para ser fotografada. Pediam também que colocasse as roupas e o lenço que usava quando vivia no barracão. Às vezes, posava revirando latas de lixo, como fazia no passado. Afinal, era importante para os jornais mostrar a aparentemente contraditória condição de escritora e “favelada”.

O Profiles de Gente que se Acha era, na verdade, o Profiles de Gente que nos Afronta.

Algo similar aconteceu quando ela escreveu “Pedaços da Fome”, em 1963. A escritora não batizou o livro com este título: originalmente, a obra se chamaria “A Felizarda”. Sua editora, no entanto, preferiu resgatar o fio pelo qual Carolina havia se tornado uma celebridade, o clássico “Quarto de Despejo”, no qual narra o cotidiano na favela. O primeiro título era uma ironia da escritora para falar das desventuras de Maria Clara, personagem que cai em desgraça após se casar com um homem de má índole. Mas a criatividade e o deboche de Carolina foram suplantados pela insistência em mantê-la em um lugar mais conhecido publicamente: o da fome e da necessidade, não o da inventividade. Pode-se dizer que Carolina era mais interessante, noticiável, enquanto ocupava não o lugar de escritora, mas o de escritora e miserável.

Os episódios vividos por Maxwell e Carolina expõem uma operação bastante perversa, na qual a visibilidade de gente em situação vulnerável é reiterada a partir de um recorte específico, o da dor. Ele não permite associarmos pessoas que nos acostumamos a ver como coitadas ou incapazes a gestos de poder e autonomia. E, quando isso acontece, gera espanto – aqui, no caso do artista, traduzido em um racista “tu se acha”.

Afinal, há quanto tempo, para ficar somente no campo das artes, lidamos com vaidades enormes, às vezes classificadas simplesmente como “excêntricas” ou muito admissíveis, uma vez que o dono do ego reluzente é um branco “artista genial”? Sobre isso, Maxwell, que nos últimos anos ganhou espaço e dinheiro nesse circuito fechado e ainda majoritariamente de elite, escreveu:

irmãos, o jogo da arte é sobre ego e vaidade, se tu se despir disso tu vai ser atropelado. muita vaidade na maneira como os brancos agem. importante a gente mapear esses comportamentos e entender o pq só a vaidade deles é válida. a vaidade silenciosa. eles ainda querem manter o controle da narrativa, da representação e dos nossos corpos. se um preto se envaidecer é perigoso para eles. por isso condenam nossa vaidade e ego. nos querem subjugados, calados, obedientes.

Faço questão de estudar esse “tu se acha” há mais de uma década, quando entendi que a frase era quase sempre um rebate a ações de emancipação e autoestima de pessoas que, no pacto da falsa “democracia racial”, deveriam “ficar em seus lugares”: mulheres, pretas, pobres, bichas, travestis. Investiguei a relação entre celebridades e pobreza e analisei, entre outros veículos, um site (já extinto) chamado Profiles de Gente que Se Acha, ou Blog da PGA.

Era 2010, uma outra era na internet, mas as redes sociais já serviam como matéria-prima para que os autores da página selecionassem, em plataformas como o Facebook, imagens de pessoas que se retratavam, se exibiam. Mostravam suas casas de paredes descascadas ou tijolos aparentes, mostravam o corpo gordo, o corpo preto, o corpo trans ou travesti, o corpo geralmente não visível nas revistas de celebridades, nas direções de empresas e demais espaços legitimados de poder.

Justamente por isso, eram motivo do riso e do escracho público: como ousavam colocar suas existências periféricas aos olhos de todos? Mas, apesar dos achaques, elas não deixaram, ao longo dos anos, de aparecer ainda mais. Como eu escrevi na época, elas, felizmente, “se achavam” e entendiam que também eram dignas de surgir publicamente e rachar o padrão de visibilidade magro, branco, jovem, rico. O Profiles de Gente que se Acha era, na verdade, o Profiles de Gente que nos Afronta.

Naquele mesmo início de década, não posso deixar de trazer aqui, a DJ Lala K, uma das criadoras da festa Sem Loção, estava indo trabalhar, durante o carnaval. Para conseguir atravessar a multidão em Olinda e garantir tanto a sua integridade quanto a do equipamento que levava, contratou um segurança. Enquanto atravessava o rojão de gente, ouviu uma mulher se espantar e dizer: “Quem essa negrinha pensa que é para estar com segurança?”. O chilique racista foi devolvido com graça, invenção e beleza, essas coisas de preto: ali, surgia a festa Seguranças de Lala K – Quem essa negrinha pensa que é?, até hoje parte do freje carnavalesco de Pernambuco.

Eu ouvi algo com certa similaridade: quando ganhei meu primeiro Prêmio Esso, em 2007, um homem branco, ao me ver chegar na redação após receber a honraria no Rio de Janeiro, gritou, em tom jocoso: “Esso, Esso, Esso: a neguinha é um sucesso”. Nunca esqueci. Ele estava, na sua cabeça forjada no racismo brasileiro, “apenas brincando”.

A obra "Santa Cruz", do artista Maxwell Alexandre.

A obra ‘Santa Cruz’, do artista Maxwell Alexandre.

Foto: Reprodução

Negros na piscina

Confrontar as questões sobre representação e poder são fundamentais para alcançar uma democracia para além das geralmente superficiais políticas de “diversidade”. Desde que entrei em uma redação, há mais de 20 anos, percebi como eram homogêneas as formas de falar e retratar pessoas pobres, pretas, travestis, etc. Vi, de dentro, como geralmente nem precisávamos abrir a boca: já éramos vistas como incapazes de algo para além de servir e, no melhor dos casos, entreter. Mas, estando dentro da máquina, entendi que também podia, a partir dela, produzir formas de contradiscurso. Para isso, bastava, por exemplo, falar não sobre travestis assassinadas, mas vivas, trabalhando, sonhando, desejando e querendo uma vida boa, assim como eu e você. Uma vez falei com Dávila, que adorava frequentar a piscina pública de seu bairro. Escrevi sobre ela, cuja foto está no texto, aqui.

Com o tempo, entendi que mostrar populações como sempre infelizes e desesperadas também era uma forma de marcar o próprio lugar de herói – e geralmente são pessoas ou empresas brancas que detêm o monopólio da representação. Ou seja: mostrar alguém em contínuo sofrimento é uma forma de colonização e manutenção do poder. Sim, havia e há sofrimento na vida da maioria da população brasileira, cujo acesso a uma cidadania básica – transporte, escolas, saneamento, lazer, segurança – é precário. Mas esse sofrer, sem romantização e enxergando o óbvio, nunca impediu (na verdade, muitas vezes impulsionou) movimentos coletivos de emancipação e alegria, como o maravilhoso Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, criado em 1975 por Candeia. O sambista, felizmente, se achava.

Essa percepção é o mote da exposição Negros na Piscina, que desenhei ao lado do curador Moacir dos Anjos. Nela, estão reunidas representações de felicidades coletivas e, portanto, políticas: o banquete reunindo famílias pretas (obra de Renata Felinto); as polaroids que mostram a orgulhosa Vênus Val Souza; os aniversários e casamentos fotografados pelos Retratistas do Morro; as faixas de miss feitas por Bispo do Rosário; os forrós feitos pelas mãos delicadas de Mestre Vitalino; o jovem negro de pé sobre um ônibus, uma das Caravelas de Hoje pintadas por Maxwell Alexandre.

Tem tule, tem sonho, tem piscina e tem futuro em diversas outras obras que compõem a mostra, em cartaz até meados de maio de 2023 na Pinacoteca do Ceará, Fortaleza (aliás, é significativo como o investimento em cultura no estado, que também inaugurou um enorme centro de artes no Cariri, não ganha espaço nos jornalões). Em um país que destruiu durante tanto tempo a auto-estima da maioria de sua população, só a tolerando quando ela respondia educadamente “sim, senhor”, é preciso entender que pretos, bichas e todas as pessoas periféricas “que se acham” estão também reconquistando sua humanidade. E exibir essas expressões é fundamental.

Termino contando um presente inesquecível que ganhei quando estava voltando justamente da montagem e inauguração da exposição. Na sala de embarque do aeroporto, às 7h30 da manhã, me deparei com uma mulher alta, de cabelos muito curtos, vestindo uma reluzente blusa de paetês prateados. Usava ainda um colar de pérolas, saia e saltos altos dourados. Era uma celebração, um espetáculo, um VRÁ elegante no meio da monotonia dos jeans e camisetas. Sentou próxima a mim e eu não resisti: me aproximei e elogiei seu brilho.

Camilla Requião, que trabalha como cuidadora, tinha saído de Goiás às 18h do dia anterior e seguia para uma celebração em Recife. “Aí já vim arrumada para a festa”, contou. Ela me passou seu telefone e, mais tarde, mandei mensagem e perguntei se podia postar uma foto que fiz enquanto ela aguardava a bagagem. A resposta foi maravilhosa: Camilla não só permitiu, como também enviou uma série de imagens  nas quais ela aparece igualmente chique, brilhante, montada, bonita, feliz, negra e orgulhosa de si. Eu as divido aqui, após a permissão dela, como presente também para vocês.

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Parte das imagens enviadas por Camilla.

Foto: Arquivo Pessoal/Camilla Requião

Desejo um 2023 no qual Camilla, Maxwell, Carolina, Lala, eu e todas as pessoas historicamente vistas como pouco, vistas como nada, vistas como descartáveis, se achem. Que a gente se ache e se ame muito, entendendo que nosso fortalecimento não se dá por meio de projetos meramente individuais, mas principalmente em rede. Em um país que ensinou tantas formas de auto-ódio, amar a si é urgente. Desejo um país onde toda Ester esteja viva e dançando Vogue. Desejo um país que não volte a eleger um destruidor e amante do fascismo. Feliz 2023, pessoal.

PS: Deixo ainda um banho de gente que se acha dançando na pista (ou na piscina):

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